Segredos de Escritório




Última atualização: 15/06/2025.
Prólogo | 01 | 02 | 03 | 04





Eu sabia que minha vida profissional não era exatamente um conto de fadas, mas também não achava que estava fadado a ser um "cobaia" no mercado de trabalho. Isso ficou claro no momento em que meu chefe me chamou para uma conversa "especial" depois de anunciar que eu seria demitido por contenção de custos.

— Escuta, eu não queria te deixar na mão. Você é um cara esforçado, sabe? — ele disse, com aquele tom que misturava pena e alívio por não ser ele quem ia ficar desempregado. — Então, consegui algo temporário para você. É uma experiência curta, mas com potencial.

Potencial? Eu devia ter desconfiado.

— Você vai ser o novo secretário da CEO da Domus Enterprises. Ela é… única. — Ele disse a palavra "única" como se fosse um eufemismo para algo inconfessável. — A ideia é que você fique lá enquanto o RH encontra alguém definitivo.

Não era bem uma proposta — era mais um ultimato.

— Se você aguentar até eles encontrarem uma nova secretária, eu te dou um aumento quando você voltar. Mas se ela te demitir antes disso... bem, boa sorte por aí.

Eu estava sem escolha. Aceitei, pensando que, no máximo, teria que aturar alguma chefe autoritária e com mania de grandeza por umas duas ou três semanas. Como dizia minha irmã, “todo mundo tem um preço, e o seu é bem baixo”. Naquele momento, o preço era a promessa de um aumento e a esperança de não voltar para casa morando com ela e dividindo o último pacote de macarrão instantâneo.
No dia seguinte, eu me vi em frente ao prédio da Domus Enterprises, tentando não suar nas mãos enquanto me apresentava à recepcionista. Eu estava prestes a conhecer a lendária CEO que fazia todas as suas secretárias fugirem como se o próprio inferno estivesse as perseguindo.
Eu não sabia como seria meu futuro ali. Mas tinha certeza de uma coisa: esse emprego temporário não seria apenas mais uma linha discreta no meu currículo. Alguma coisa me dizia que, ao fim disso, eu teria histórias o suficiente para escrever um livro. E talvez, se sobrevivesse, até mesmo um aumento.


O primeiro dia de trabalho é sempre um teste de fogo, mas o meu parecia ter sido projetado para quebrar qualquer recorde de caos logo nas primeiras horas. A recepcionista Bianca — como dizia seu crachá — me lançou um olhar misto de pena e curiosidade enquanto eu esperava pelo elevador.

— Primeiro dia? — ela perguntou, como se não fosse óbvio.
— Sim. Alguma dica? — tentei soar descontraído, mas meu nervosismo vazava em cada palavra.
— Boa sorte, é o que posso dizer. — E riu, como se eu fosse o protagonista de uma comédia de erros que ela já assistira muitas vezes.

O elevador chegou com um ding que parecia mais alto do que deveria ser, ou talvez fosse apenas meu coração disparado ecoando em meus ouvidos. Quando as portas se abriram no andar da presidência, a atmosfera mudou completamente. O silêncio era tão absoluto que eu podia ouvir o som dos meus sapatos contra o chão impecável de mármore.
Uma assistente com um sorriso forçado me conduziu até a sala principal, onde ela aguardava. Minha nova chefe.
O escritório dela era uma obra de arte do design minimalista e luxuoso. As paredes eram de um branco impecável, interrompidas apenas por prateleiras embutidas que exibiam livros de negócios, prêmios e algumas poucas esculturas modernas. A mesa dela, feita de vidro e aço escovado, estava impecavelmente organizada, com um notebook prateado no centro e uma caneta de tinta preta estrategicamente posicionada ao lado. Atrás dela, enormes janelas iam do chão ao teto, oferecendo uma vista espetacular da cidade, com prédios que pareciam competir em altura com o céu. O contraste entre a vista vibrante e o ambiente frio do escritório deixava claro que aquela sala era feita para impressionar e intimidar.
Uma mulher estava sentada em uma cadeira que parecia mais um trono de couro preto. A luz que atravessava as janelas enormes dava à sala um ar teatral, destacando seus traços impecáveis. Ela tinha um semblante firme, os cabelos presos em um coque elegante e uma postura que exalava autoconfiança. Por um momento, enquanto tentava processar toda a cena, não pude evitar pensar: "Incrível como ela é bonita." Era o tipo de beleza que intimidava, algo que combinava perfeitamente com o ambiente frio e calculado daquele escritório. Seu olhar atravessou o espaço até mim com a precisão de uma flecha. Eu não precisava de apresentações para saber que aquela era a CEO da Domus Enterprises, .

— Então você é o substituto improvisado, é isso? — ela perguntou, sem levantar os olhos da tela do computador.
— Sim, senhora. Quero dizer, sim, sou eu. — Eu odiava o som da minha voz naquele momento.
— Não me chame de senhora. Parece que estou contratando um mordomo. Me chame de... Srta. . — Ela finalmente olhou para mim, com uma expressão que misturava impaciência e curiosidade. — Qual é o seu nome mesmo?
.
. Certo. Vamos ver se você dura mais que o último. — E com isso, ela voltou sua atenção para o computador, claramente me dispensando.

Os minutos seguintes foram um borrão de ordens rápidas e instruções confusas.

— Quero que você pegue a planilha de desempenho da equipe de vendas. Ela está na pasta compartilhada e, por favor, me diga que você sabe usar o sistema interno.
— Sim, claro! — Respondi, mesmo não tendo a menor ideia do que era "pasta compartilhada" naquele contexto.
— Depois, ligue para o fornecedor da campanha de mídia e pergunte por que a apresentação de layouts ainda não foi enviada. Você consegue fazer isso em 15 minutos? Porque eu preciso disso antes da próxima reunião.

Eu apenas assenti freneticamente enquanto anotava as instruções em um bloco de notas improvisado — uma folha sulfite que eu encontrei em cima da mesa.

— Ah, e café. Forte, sem açúcar. Você vai encontrar a cafeteira na sala ao lado, mas não demore. E nada de café frio.

Antes que pudesse responder, ela continuou:

— Aproveite e imprima as notas da última reunião com o comitê financeiro. Estão no meu e-mail, enviei para você agora. Você sabe usar o e-mail corporativo, né? Se não souber, bem… aprenda rápido.

Enquanto corria para cumprir a lista interminável, percebi que ela nem sequer esperava confirmação de que eu entendera tudo. Era como se minha presença fosse algo tão automático quanto um aplicativo respondendo a comandos. Entre idas e vindas, os detalhes da minha missão pareciam aumentar a cada passo.
Primeiro, o café. A sala de café, escondida em um canto pouco iluminado, parecia um labirinto para alguém que estava ali pela primeira vez. O café era forte demais e o copo tremia na minha mão enquanto eu voltava para entregá-lo. Ao colocá-lo à mesa dela, ela sequer olhou para cima.

— Finalmente. Agora me explique por que ainda não ligou para o fornecedor?
— Já estou fazendo isso — menti, enquanto abria o meu notebook em uma mesa improvisada na sala dela, se é que aquilo poderia ser chamado de mesa. Eu estava mesmo ferrado nesse trabalho.

Quando consegui acessar o sistema, percebi que as planilhas que ela mencionou estavam em uma pasta que exigia permissões que eu não tinha. A chamei para perguntar, mas ela levantou uma sobrancelha e apenas apontou para o telefone.

— Resolva. Se precisar de permissão, fale com TI. E não venha me perguntar sobre coisas que você deveria saber resolver sozinho.

Eu me senti como uma criança sendo repreendida pela professora e voltei correndo para o telefone. Ligar para o fornecedor foi outro desafio. Eles não atendiam, e quando finalmente consegui falar, a pessoa do outro lado parecia não ter a menor ideia do que era a apresentação que ela mencionara. Enquanto tentava esclarecer, senti o olhar dela atravessando meu crânio.

— Alguma novidade? — ela perguntou, cruzando os braços.
— Eles estão verificando — respondi, sem mencionar o fato de que ainda não sabiam do que eu estava falando.

Ao final da tarde, minha folha sulfite improvisada parecia uma zona de guerra. Havia setas, palavras rabiscadas e lembretes de coisas que eu provavelmente não entenderia mais tarde. Quando finalizei a impressão das notas do comitê financeiro e as entreguei, ela pegou os papéis, folheou por dois segundos e disse:

— Você imprimiu isso em preto e branco? Da próxima vez, quero em cores. Estamos em 2025, . Não em 1998.

Assenti, sem energia para discutir que ninguém havia me dito nada sobre isso. Quando finalmente me sentei para respirar, ela me chamou, de novo.

— Preciso que você me envie por e-mail um resumo das notas para o time de marketing. Mas revise antes. Não vou tolerar erros.

No fim do dia, percebi que não tinha comido nada e que minha energia estava no limite. Cada vez que eu pensava em ir comer, ou pensava em ir ao banheiro, sentia como se fosse avaliado em uma escala invisível de competência. Era oficial: eu não passava de mais um peão no xadrez dela. Necessário, mas facilmente substituível.

💻👠

Minha casa era um pequeno apartamento no terceiro andar de um prédio antigo, mas bem cuidado. O prédio tinha um charme peculiar: as janelas tinham caixilhos de madeira pintados de branco, e a entrada era decorada com plantas em vasos de barro, cortesia dos vizinhos do térreo. Subir as escadas era quase um ritual. Os degraus rangiam a cada passo, lembrando-me do peso do dia que eu carregava.
As paredes do corredor de entrada do meu apartamento estavam decoradas com alguns dos meus desenhos, emoldurados de forma improvisada. Eram retratos que eu fazia para passar o tempo, misturando pessoas imaginárias e paisagens surreais. Clara dizia que isso fazia o lugar parecer mais nosso, menos um aluguel genérico. Sempre tive vontade de seguir no ramo da ilustração, mas nunca pude devido a fatores financeiros, então havia se tornado um hobby para mim. Quem sabe um dia eu possa me dedicar mais a isso?
A sala de estar, embora pequena, era aconchegante, com um sofá cinza que eu comprei em uma promoção e uma mesinha de centro cheia de livros e HQs, equilibrando o caos com algum charme. A TV, que ocupava boa parte da parede oposta, era provavelmente o item mais moderno do apartamento. Clara tinha insistido que era um investimento para nosso “tempo de qualidade”, embora ela passasse mais tempo maratonando séries do que eu.
Em casa havia sempre um cheiro de café misturado com a lavanda do aromatizador que minha irmã insistia em comprar. Clara dizia que o cheiro tornava o ambiente mais acolhedor. Eu achava que era uma forma de esconder o odor persistente do tapete velho que não importava quantas vezes fosse lavado, parecia nunca mudar.
Clara e eu vivíamos sozinhos em São Paulo. Ela havia passado no vestibular e, sem pensar duas vezes, abri as portas do meu apartamento para acolhê-la. Enquanto isso, nossos pais continuavam morando no interior do Tocantins, distantes da correria e das luzes da cidade grande.
Joguei minha mochila no chão da sala assim que entrei e me sentei no sofá como se fosse um sobrevivente de um apocalipse corporativo. Minha irmã mais nova apareceu na porta da cozinha com um saco de pipoca na mão e uma expressão confusa no rosto.

— Você parece que foi atropelado por um caminhão. Tudo bem? — perguntou, jogando um grão de pipoca na boca.
— Não, Clara. Definitivamente não. — Suspirei e fechei os olhos. — Primeiro dia de trabalho e eu já quero pedir demissão.

Ela riu e se sentou ao meu lado, empurrando o saco de pipoca para mim.

— O que aconteceu?
— A chefe. Ela é… infernal. Um demônio em salto alto. Eu mal entrei na sala e ela já estava me jogando uma lista infinita de tarefas. E o pior é que ela não explica nada. Só manda. E se você não adivinha o que ela quer, é tratado como idiota.

Clara arregalou os olhos, pegou mais um punhado de pipoca e respondeu:

— Parece até cena de filme. Mas você conseguiu fazer tudo?
— Na verdade, não. Quase tudo deu errado. Café errado, impressão errada, telefonema perdido… Eu me senti como um extra em um filme de desastre.

Ela me deu um tapinha no braço, tentando me animar.

— Relaxa, . Amanhã vai ser melhor. Talvez ela só estivesse testando você.
— Testando minha sanidade, isso sim.
, pensamento positivo, hum? E como ela é? Tem quantos anos? Fiquei curiosa.
— Ela é uma mulher bonita, isso é... evidente. — As palavras escaparam antes que eu pudesse me conter, e Clara imediatamente levantou uma sobrancelha, me encarando com aquele olhar que só ela sabia dar.
— Bonita? Isso foi muito mais informação do que eu esperava. — Ela se inclinou na poltrona, claramente esperando mais. — Anda, me conta mais. Eu sei que tem algo aí.

Suspirei, percebendo que não conseguiria escapar.

tem cerca de trinta e três anos. Ela é inteligente, exigente, e dá para ver que a pressão que ela coloca nos outros é a mesma que ela coloca em si mesma.
— Trinta e dois? — Clara arregalou os olhos. — Relativamente nova para ser CEO de uma grande empresa. E só cinco anos mais velha que você! Isso não te intimida nem um pouco?
— Clara, ela intimida qualquer pessoa. Mas não é a idade, é a presença dela. Quando ela entra na sala, parece que o ar simplesmente muda.

Clara deu um sorriso debochado, claramente se divertindo com a minha descrição.

— Então, ela é tipo uma vilã de filme, só que muito gata?
— Não ajuda. — Revirei os olhos. Clara soltou uma gargalhada e se ajeitou no sofá. Depois de uma pausa, ela mudou de assunto, talvez percebendo que eu precisava de um respiro.
— Você acha que seu dia foi ruim? Meu professor de cálculo hoje resolveu passar um monte de exercício de revisão, como se não bastasse a quantidade de trabalho que eu já tenho. Sério, ele só pode estar de implicância.

Eu ri, balançando a cabeça. Clara cursava engenharia, então matemática fazia parte de sua rotina.

— Você sempre acha que os professores estão de implicância.
— Porque eles estão! — Ela deu um sorriso irônico. — Mas olha, nem tudo foi péssimo. Eu acho que estou me apaixonando pelo Marcos.

Aquilo me pegou de surpresa.

— O Marcos? Aquele do seu grupo de estudo? Achei que vocês eram só amigos.
— É, mas ele é tão atencioso, sabe? E tem umas conversas que… Sei lá, acho que ele gosta de mim também. — Ela desviou o olhar, como quem não queria admitir muito mais.
— Então vai em frente. Só tome cuidado para ele não te distrair tanto que você acabe errando as contas no cálculo.
— Pode deixar… Aliás, você falando de romance… E ai, ainda solteiro?
— Por escolha. Acredite, é melhor assim. Um relacionamento agora só ia complicar minha vida. Quer dizer, ainda estou vendo a Amanda de vez em quando, mas não é nada sério. Ela entende que não quero compromisso.

Clara arqueou uma sobrancelha, claramente intrigada.

— Amanda? Essa é nova. E ela tá ok com isso?
— Sim, tá tudo tranquilo. A gente sai, se diverte, mas sem pressão. É algo casual, e eu gosto assim por enquanto.

Clara balançou a cabeça, rindo levemente.

— Você é inacreditável, . Mas, se isso funciona pra vocês dois, quem sou eu pra julgar?

Ela me deu um olhar cético, como se não acreditasse muito na minha desculpa, mas não insistiu.

— Bom, se você vai continuar nessa vida de solteiro convicto, pelo menos me ajuda a escolher um filme. Hoje eu quero comédia.

Acabamos assistindo a um filme que, honestamente, nem consegui prestar atenção. Mas só o fato de estar em casa, ouvindo Clara falar sobre seus dramas da faculdade e suas paixões, já era um alívio depois daquele caos corporativo. No final das contas, a noite foi menos sobre o filme e mais sobre relembrar que, apesar de tudo, ainda havia um mundo fora daquele escritório.
Quando já estava quase pegando no sono no sofá, o som do meu celular vibrou na mesa de centro. Estiquei o braço, ainda relutante, e olhei o número: desconhecido. Suspirei, já prevendo que aquilo não seria coisa boa, mas atendi.

falando.
— Preciso de você. Agora. — A voz autoritária da Srta. veio direto ao ponto, cortando qualquer ideia de que poderia ser uma chamada rápida.

Sentei-me imediatamente, agora completamente acordado. Como aquela mulher descobriu tão rápido meu celular?

— Ah, olá, Srta. . O que aconteceu? — tentei soar profissional, mesmo que minha voz ainda estivesse arrastada de sono.
— Preciso que você revise e envie o e-mail com o relatório de marketing que pedi. Algo tão simples não deveria demorar o dia inteiro, mas, aparentemente, você esqueceu. — Ela fez uma pausa curta, o suficiente para eu começar a formular uma resposta. — Ou talvez tenha achado que poderia deixá-lo para amanhã.
— Não, claro que não! Eu já estou com tudo pronto. Só… vou conferir uma última vez para garantir. — Levantei-me e comecei a procurar meu notebook pela sala, tropeçando em minha própria mochila no processo.
— Ótimo. Espero isso na minha caixa de entrada em quinze minutos. — E, antes que eu pudesse responder, ela desligou.

Clara, que havia observado toda a cena com uma sobrancelha levantada, deixou escapar uma risada.

— Era sua chefe, não é? A "demônio em salto alto"?
— Ela mesma. — Respondi, ainda buscando o notebook entre os travesseiros do sofá. — Parece que minha paz foi oficialmente cancelada.

Clara jogou um travesseiro em mim.

— Boa sorte, irmão. Parece que você vai precisar de mais do que quinze minutos para sobreviver nesse emprego.

Enquanto conectava o notebook e abria o e-mail, não pude evitar pensar em como ela parecia dominar até mesmo o meu tempo em casa. Era só o primeiro dia, mas, de alguma forma, a Srta. já havia invadido minha vida de um jeito que eu não conseguia ignorar.



Eu havia dormido muito tarde ontem à noite, porque, depois de finalmente ter enviado e-mail que ela exigiu, a Srta. ligou novamente. Dessa vez, pediu que eu revisasse um outro documento e mandasse para o setor de marketing antes das sete da manhã. Foi uma maratona para tentar cumprir o prazo, o que me deixou com apenas algumas horas de sono e uma enorme dor de cabeça ao acordar.
Eu tentei chegar cedo, esperando impressionar — ou pelo menos evitar um sermão logo de cara, mas não deu muito certo, acabei chegando apenas 20 minutos antes das 08h00. O ambiente da Domus Enterprises era quase como uma cena de filme futurista: impecável, com uma decoração minimalista que fazia questão de lembrar aos funcionários que ali não havia espaço para erros. Ou para personalidade. Tudo era silencioso, exceto pelo som ritmo das teclas dos computadores e pelo ocasional clique de um salto mais apressado. Era um ambiente que quase exigia que você segurasse a respiração para não perturbar a ordem estabelecida.
Adentrei o escritório com passos apressados, quase como um vulto, e segui diretamente em direção à sala de . No entanto, ao entrar, percebi que a sala estava vazia. Sobre a mesa impecável, um pequeno post-it chamava minha atenção. A caligrafia elegante e firme era inconfundível, mesmo com apenas um dia de trabalho, eu já sabia exatamente de quem era.
"Sala de reunião 3, 8h em ponto. Não atrase."

Uma mensagem simples, mas escrita com a precisão de quem não admitia desculpas. A letra, claro, era da Srta. .
Olhei para o relógio e senti um leve aperto no peito: 07h48. Doze minutos. Era tudo o que eu tinha para encontrar a bendita sala de reunião número 3. Segurei o post-it em minhas mãos como se fosse meu único mapa de sobrevivência naquele labirinto corporativo e saí da sala às pressas. No entanto, antes que pudesse dar mais alguns passos, uma voz me chamou pelo nome, me fazendo parar no meio do corredor.

, certo? O novo secretário temporário da ?

Me virei rapidamente e me deparei com uma jovem bonita de estatura baixa, traços delicados e olhos atentos que me analisavam como se estivessem decifrando cada detalhe sobre mim. Ela tinha um sorriso educado no rosto, mas havia um brilho curioso em seu olhar, como se estivesse testando a peça nova desse tabuleiro corporativo.

— Sou eu. Alguma coisa errada? — perguntei, tentando manter o tom neutro, mas já me preparando mentalmente para o pior.
— Nada de errado. — Ela estendeu a mão com naturalidade. — Sou Anelise, trabalho no administrativo. Só vim te dar algumas informações úteis... e, quem sabe, um pouco de solidariedade.

Apertei a mão dela, forçando um sorriso apesar do cansaço que já me consumia.

— Solidariedade? — arqueei uma sobrancelha, desconfiado. — Isso é um aviso? Eu devo me preocupar?

Anelise soltou uma risadinha, balançando a cabeça com um ar divertido.

— Ah, você já vai entender. Mas antes, vim te avisar que você não precisa mais ficar na sala da . Arrumaram uma mesa pra você ali, do lado da nossa. Tá vendo?

Segui a direção do olhar dela e vi uma mesa simples, mas equipada com tudo o que eu precisava. Um alívio imediato percorreu meu corpo.

— Sério? Graças a Deus! Aquela sala dela... parece que o ar pesa dez vezes mais lá dentro.
— Eu acredito. — Ela riu de leve, cruzando os braços. — E então, como foi seu primeiro dia? Sobreviveu?

Eu soltei um riso curto e cansado.

— Sobreviver é um termo otimista. Foi... intenso, pra dizer o mínimo. tem um radar especial pra perceber quando você tá começando a respirar aliviado, só pra te jogar mais trabalho.
— Bem-vindo ao mundo de . — O tom dela tinha um toque divertido, mas também empático. — Não vou mentir, ela não é fácil. Aliás, sabia que ninguém dura muito tempo nesse cargo?

Eu já tinha sentido isso na pele, mas levantei uma sobrancelha, curioso.

— Eu tinha ouvido rumores... mas não achei que fosse tão grave assim.

Anelise deu um passo mais perto, como quem fosse compartilhar um segredo.

— Aqui no escritório, a gente tem um bolão para adivinhar quanto tempo o novo secretário vai aguentar.

Minha boca se entreabriu por um instante antes de eu soltar uma risada incrédula.

— Bolão? Você tá de brincadeira.
— Nem um pouco. — Anelise riu junto, inclinando a cabeça como se compartilhasse um segredo proibido. — Teve uma menina que durou só três dias antes de sair daqui chorando.
— Três dias?! — exclamei, genuinamente surpreso. — E o que vocês apostaram pra mim? Já criaram um prazo de validade pro meu cargo?

Ela cobriu a boca com a mão, fingindo confidencialidade, mas claramente se divertindo com a situação.

— Ah, isso é segredo... Mas ouvi uns palpites interessantes. Vamos ver se você surpreende alguém. Pelo menos o seu é temporário, né? Quem sabe a pressão seja menor.

Soltei um suspiro, balançando a cabeça.

— Não é bem assim, Anelise. Eu preciso trabalhar bem para não ser demitido. Se isso acontecer, eu estou ferrado. Não tenho lugar para voltar.

O sorriso dela diminuiu levemente, substituído por uma expressão mais compreensiva.

— Sério? Eu não fazia ideia. — Ela franziu a testa, visivelmente surpresa. — Isso deve ser complicado.
— Pois é, mas pelo menos agora eu tenho uma mesa só minha e um pouco mais de distância daquele olhar mortal dela.

Anelise voltou a rir, mas logo apontou para o post-it amassado que eu segurava com firmeza.

— Não se empolgue muito. Esse bilhetinho aí? É só o começo. sempre encontra um jeito de te achar, mesmo que você se esconda do outro lado da cidade.

Revirei os olhos, soltando uma risada seca.

— Maravilha... Valeu pela motivação, Anelise. Aliás, você sabe onde fica a sala de reunião 3? Tenho que chegar nela em... — olhei para o relógio e engoli em seco — quatro minutos.

Ela arregalou os olhos e soltou uma exclamação de falsa pena.

— Nossa... Você realmente está ferrado. Eu te mostro o caminho. Vem antes que mande alguém te caçar.

E assim, segui Anelise pelo corredor, passando por um mar de mesas organizadas em fileiras impecáveis, onde funcionários digitavam freneticamente ou falavam ao telefone. O chão impecavelmente polido refletia a luz fria dos painéis no teto, enquanto o som ritmado dos saltos dela ecoavam pelo ambiente silencioso. Viramos à esquerda em um corredor mais estreito, onde as portas das salas de reunião estavam alinhadas, cada uma identificada com uma placa discreta ao lado. Anelise caminhava com facilidade, claramente acostumada com aquele labirinto corporativo, enquanto eu tentava memorizar o caminho para não me perder da próxima vez.
Chegamos diante de uma porta de vidro fosco com a identificação "Sala de Reunião 3". Ela parou e apontou com a cabeça.

— É aqui. Boa sorte, .

Soltei um suspiro profundo antes de agradecer com um aceno. Entrei na sala e me esperava junto com dois colaboradores, desconfiava que eram parte do time de contabilidade, mas ainda não havia decorado rostos. Ambos estavam arrumados como se tivessem acabado de sair de um editorial de moda corporativa.
, por outro lado, tinha algo de diferente naquele dia. Ela usava um vestido preto muito bonito, o tecido ajustava-se perfeitamente ao seu corpo, moldando suas curvas com uma precisão que parecia quase proposital. O corte do vestido desenhava sua silhueta de forma elegante, mas não havia como ignorar como ele também destacava sua bunda, perfeitamente delineada. Era impossível não notar como ela estava bonita naquele dia, algo que, para minha própria irritação, deixou minha atenção levemente dispersa por um momento.
Eu não sabia se era o vestido impecavelmente ajustado ao seu corpo ou o olhar de desdém que ela lançava com precisão cirúrgica para todos ao seu redor, mas havia algo em sua presença que tornava o ambiente ainda mais gélido que o ar-condicionado. Era como se sua postura e aura de autoridade redefinissem a temperatura da sala, impondo uma atmosfera de respeito e intimidação que ninguém ousava desafiar.

— Você está atrasado dois minutos, eu falei 8 horas! Sente-se logo — ela disse, sem nem sequer olhar para mim enquanto folheava alguns papéis. Logo depois de eu me sentar, ela sentou-se também. — Hoje será um dia cheio, e eu não tenho tempo para explicar tudo duas vezes.

“Nada como um bom dia caloroso para começar”, pensei, mas me limitei a assentir e sentar na cadeira mais distante da cabeceira.

, preciso que você organize uma planilha de custos detalhada. Quero cada despesa categorizada e comparada com o orçamento anterior. Sem erros, porque estarei apresentando isso ao conselho amanhã.

Assenti rapidamente, anotando tudo com a maior pressa possível.
A Domus Enterprises, até agora pouco mencionada em detalhes, era uma das principais empresas do ramo de Marketing e Publicidade. Especializada em criar campanhas impactantes e estratégias inovadoras, a empresa era reconhecida no mercado pela sua habilidade em transformar marcas em verdadeiros ícones. Era um ambiente competitivo e exigente, onde cada projeto carregava o peso de expectativas altíssimas — algo que fazia todo sentido, considerando que estava no comando.
— Além disso, há um evento na próxima semana. Você será responsável por supervisionar a entrega dos materiais. Certifique-se de que tudo esteja no local correto e no horário combinado. Qualquer atraso será inaceitável.

Ela fez uma pausa breve, apenas o suficiente para folhear outro documento, antes de continuar:

— E revise minha agenda para o restante da semana. Quero garantir que não haja conflitos ou reuniões desnecessárias. Preciso que cada minuto do meu tempo seja aproveitado.

Eu senti a pressão aumentar a cada palavra dela, mas tentei manter uma expressão neutra.

— Alguma dúvida? — perguntou, finalmente levantando os olhos para me encarar. Seu olhar era firme, como se estivesse pronta para contestar qualquer resposta que não fosse a esperada.
— Não, Srta. . Tudo claro — menti, tentando soar confiante enquanto segurava meu caderno de anotações com força suficiente para amassar as bordas.

Ela estreitou os olhos, claramente desconfiada, como se estivesse esperando que eu entrasse em pânico a qualquer momento. Mas, para meu alívio, não insistiu. Apenas balançou a cabeça de leve, como se tivesse mais coisas importantes para fazer, antes de passar para o próximo tópico da reunião.
A reunião seguiu seu curso, com distribuindo instruções em um ritmo tão rápido que minhas anotações pareciam mais um emaranhado caótico de palavras e setas do que algo compreensível.
Os outros dois colaboradores ao redor da mesa pareciam muito mais acostumados com aquela rotina. Um deles, um homem de terno cinza e expressão neutra, apenas balançava a cabeça de tempos em tempos, como se já soubesse exatamente o que fazer antes mesmo de falar. A outra, uma mulher elegante de cabelos presos em um coque meticuloso, digitava no notebook com a precisão de um robô programado para acompanhar a CEO.
Eu, por outro lado, tentava não parecer perdido no meio daquele furacão de ordens.

— a voz dela cortou meus pensamentos como uma lâmina. Eu imediatamente ergui os olhos.
— Sim, Srta. ?
— Você parece distraído. Algum problema?

Neguei rapidamente.

— Nenhum problema, estou apenas garantindo que tudo esteja anotado corretamente.

me observou por um momento, como se estivesse analisando minha credibilidade, antes de desviar a atenção de volta para os documentos à sua frente.

— Muito bem. Porque erros não são aceitáveis.

Soltei um suspiro interno. "Sim, claro, como se já não estivesse óbvio."
A reunião seguiu por mais alguns minutos, até que finalmente fechou a pasta que tinha diante de si e se levantou.

— Estamos terminados por agora. Voltem ao trabalho. , fique.

Meus ombros enrijeceram automaticamente.
Os outros dois colaboradores recolheram seus materiais e saíram, deixando-me sozinho com . O silêncio que se instalou na sala era quase opressor, e a maneira como ela me observava, agora sem testemunhas, só tornava tudo pior.
Ela caminhou lentamente até a cabeceira da mesa e apoiou as mãos na superfície de vidro, inclinando-se ligeiramente na minha direção.

— Você tem certeza de que não há dúvidas?

Engoli em seco.

— Tenho sim.

Ela franziu os lábios, como se não estivesse convencida.

— Espero que sim, . Porque se eu tiver que corrigir qualquer erro seu mais tarde, não serei tão paciente quanto fui agora.

Ah, então aquilo foi paciência? Bom saber.
Assenti, lutando para manter a expressão neutra.

— Vou garantir que tudo saia como o esperado.

me analisou por mais alguns segundos, então se afastou, pegando uma caneta da mesa e brincando com ela entre os dedos.

— Ótimo. Pode ir.

Levantei-me rápido demais, quase derrubando minha caneta no processo. Peguei minhas anotações e me virei para sair, mas, antes que eu alcançasse a porta, ouvi sua voz novamente.

.

Me virei.

— Sim?

Ela me observou por um instante antes de apenas balançar a cabeça e dizer:

— Nada. Apenas faça seu trabalho direito.

E com isso, me dispensou.
Saí da sala ainda tentando decifrar se aquilo havia sido um teste, uma ameaça velada ou apenas mais um dia comum no mundo de . O peso das expectativas dela parecia ter se instalado nos meus ombros como uma mochila cheia de pedras, e, enquanto voltava para a minha estação de trabalho, percebi que minha lista de tarefas estava mais para uma missão impossível digna de filme de ação.
O primeiro obstáculo do dia surgiu rápido: localizar o fornecedor de materiais para o evento da próxima semana. Simples? Não. O problema? Eles tinham trocado o endereço de entrega, e os itens estavam, naquele momento, a caminho do outro lado da cidade. O telefone parecia pesar na minha mão enquanto eu tentava, pela terceira vez, explicar a situação para alguém do outro lado da linha que claramente não estava tão interessado quanto eu em resolver o problema.

— Senhor, vamos verificar isso e retornaremos assim que possível — disse o atendente, com um tom arrastado que fazia "assim que possível" soar como "talvez nunca".

Fechei os olhos por um instante, tentando controlar minha frustração. Respirei fundo e respondi, com a firmeza que eu não sentia internamente:

— Não, "assim que possível" não é suficiente. O evento é daqui alguns dias e preciso da confirmação agora. — Minha voz soava firme, mas meu cérebro já estava em pânico, pensando em todas as maneiras que aquilo poderia dar errado.

Enquanto eu argumentava, senti uma presença ao meu lado. Era como se o ar tivesse ficado mais frio e mais pesado ao mesmo tempo. Olhei de relance e, claro, lá estava ela: , parada com os braços cruzados, me observando como se fosse uma predadora avaliando sua presa. Seus olhos estavam fixos em mim, impassíveis, e eu não sabia se ela estava apenas analisando meu desempenho ou mentalmente atualizando meu prazo de validade no cargo.

— Algum problema? — perguntou ela, com a voz tão firme quanto sua postura. Seu tom não era exatamente hostil, mas carregava uma curiosidade cortante, como se ela já soubesse que algo estava errado e só quisesse ouvir a confissão.

Desliguei o telefone com mais rapidez do que pretendia, tentando parecer que estava no controle.

— Nada que não possa ser resolvido — respondi, segurando o caderno de anotações como se fosse um escudo. — O fornecedor confundiu os endereços, mas estou corrigindo isso agora.

Ela arqueou uma sobrancelha, dando aquele olhar característico que fazia qualquer um se sentir dois passos atrás. Então, deu um passo à frente, inclinando-se ligeiramente, como se quisesse examinar meu trabalho de perto.

— Espero que resolva rápido. Não temos margem para erros. — Como se eu já não soubesse disso. fazia questão de reforçar essa mensagem a cada cinco minutos. Era sua maneira particular de me lembrar, sem palavras, que qualquer deslize seria inaceitável.
— Vai ficar tudo certo, srta. . — Garanti, embora uma parte de mim ainda não soubesse exatamente como eu ia conseguir isso.

ficou em silêncio por alguns segundos, como se estivesse avaliando a credibilidade da minha promessa. Então, finalmente, assentiu de leve antes de se virar e sair, voltando para sua sala. Mas, mesmo depois de sua partida, era como se sua presença ainda pairasse no ar. A pressão parecia ter se impregnado no ambiente, como um lembrete invisível de que qualquer erro seria imperdoável.
Quase no mesmo instante, o telefone tocou novamente. Atendi rápido, esperando que fosse o atendente do fornecedor, e, para meu alívio, desta vez a pessoa parecia mais disposta a colaborar. Com algumas instruções rápidas e um tom mais firme, consegui corrigir o erro e confirmar o novo endereço. Desliguei o telefone e soltei um suspiro pesado, sentindo o alívio percorrer meu corpo por alguns segundos.
Após me chamar em sua sala no começo da tarde, ela saiu por um instante para ir ao banheiro, deixando-me sozinho. Resolvi aproveitar a oportunidade para impressioná-la, organizando os papeis que estavam espalhados pela mesa. Contudo, minha tentativa de bajulação rapidamente se transformou em um desastre cômico.
Eu estava tão focado em entender de onde os documentos eram, franzindo a testa e balbuciando para mim mesmo, que não percebi sua entrada silenciosa na sala. Só notei sua presença quando, em um movimento desajeitado, meu cotovelo derrubou sua caneca de café — felizmente vazia — no chão, produzindo um som estridente que ecoou pela sala.

— Esse é um método interessante de organização, — disse ela, com um leve sorriso que pendia mais para a ironia do que para diversão, enquanto cruzava os braços e inclinou levemente a cabeça para me observar.

O calor subiu para o meu rosto imediatamente. Eu me abaixei rápido para pegar a caneca, sentindo minhas orelhas queimarem de vergonha.

— Desculpe, srta. . Eu… me distraí. Vou pegar isso agora mesmo — murmurei, tentando esconder o embaraço, embora minha voz trêmula entregasse tudo.

permaneceu no mesmo lugar, me observando de cima com aquele olhar que parecia atravessar a alma.

— Se distraiu? — Ela ergueu uma sobrancelha, o tom de voz firme. — Espero que não seja com algo irrelevante. Temos um evento para organizar e uma agenda cheia. Não posso me dar ao luxo de desatenções.

Engoli em seco e me levantei rapidamente, segurando a caneca como se fosse uma relíquia.

— Não, claro que não, eu só me distraí lendo estes documentos. Quanto ao evento, está tudo certo. Foi… só um momento de desatenção. Prometo que não vai acontecer de novo — garanti, com uma tentativa de confiança que, internamente, parecia falhar miseravelmente.

Ela deu um passo à frente, pegou a caneca de minha mão e a examinou como se estivesse verificando algum dano.

— Espero que não. Não tenho tempo para lidar com caos desnecessário, . — Sua voz era séria, mas o canto de sua boca se curvou ligeiramente, quase formando um sorriso. Quase.

colocou a caneca de volta na mesa com um gesto preciso, como se até isso fosse ensaiado, e lançou um último olhar na minha direção. Esse olhar... demorou mais do que o necessário, carregado de algo que eu não conseguia decifrar. Era avaliação, divertimento, ou apenas seu jeito de me lembrar quem estava no comando? Eu não sabia.

— Agora, volte ao trabalho e me deixe sozinha! — disse ela, com o tom firme que encerrava qualquer conversa, antes de se virar com a elegância que parecia natural a ela.

Por um momento, fiquei onde estava, segurando a respiração e processando a situação. Apesar do tom autoritário e da postura impecável, havia algo nos olhos dela que brilhou por um breve instante, como se, talvez, ela tivesse achado a cena discretamente divertida. Ou talvez fosse só minha imaginação tentando aliviar o constrangimento esmagador.
Não fiquei mais para tentar entendê-la. Peguei meu caderno, ajeitei a postura e saí da sala, sabendo que, por mais que tentasse, continuaria sendo um enigma que eu dificilmente resolveria.
Ao fim do dia, quando finalmente terminei de revisar a agenda de , fui arrancado da minha concentração por sua voz firme e inconfundível.

— Alguma atualização sobre os materiais?

Meu coração deu um pequeno salto e minha cabeça se ergueu tão rápido que quase derrubei a pilha de papeis ao lado do teclado.

— Sim, estão a caminho. Devem chegar a tempo para o evento — respondi, tentando manter a compostura, embora minha voz entregasse um leve resquício de hesitação.

inclinou a cabeça, analisando-me com aquele olhar clínico que sempre parecia pesar a credibilidade das palavras alheias.

— Espero que sim. Porque, se houver atrasos, você será o responsável por dar explicações ao cliente.

A forma como ela pronunciava cada palavra soava como uma sentença. Respirei fundo, engolindo em seco, e assenti com determinação.

— Não vai acontecer. Eu garanto.

Ela permaneceu ali por um instante, como se quisesse se certificar de que eu realmente acreditava no que dizia. Finalmente, deu um passo para trás e virou-se para sair.
Foi então que percebi, mais uma vez, o quão graciosa era a maneira como ela caminhava. não apenas passava pelo ambiente — ela dominava o espaço ao seu redor. Cada passo era meticulosamente calculado, carregado de confiança e controle absoluto. E, bom… o vestido que ela usava só reforçava ainda mais aquela presença avassaladora. Meu olhar demorou um pouco mais do que deveria, fixando-se na forma impecável como o tecido moldava suas curvas, especialmente a maneira provocante como realçava sua bunda.
Antes que eu tivesse tempo de me repreender mentalmente por aquilo, parou de repente e olhou por cima do ombro.

— Mais alguma coisa, ? Ou prefere continuar admirando enquanto eu saio? — Sua sobrancelha arqueada e o tom meticulosamente casual, mas carregado de um certo divertimento, me fizeram congelar.

Meu rosto ficou em chamas na mesma hora.

— N-não, Srta. . Tudo sob controle! — gaguejei, voltando meus olhos para a tela do computador como se minha vida dependesse disso.

Ela esboçou um sorriso sutil — o tipo de sorriso que fazia questão de deixar no ar se era pura diversão ou apenas condescendência — e continuou andando, sumindo pelo corredor.
Fiquei ali, tentando afastar os pensamentos que insistiam em surgir.
”Isso é problema. Um grande problema.”, conclui, exalando o ar que nem percebi estar prendendo.
Quando finalmente cheguei em casa, joguei minha mochila no chão da sala e desabei no sofá. Clara estava na mesa de jantar, cercada por livros e cadernos, com o rosto franzido enquanto resolvia algum cálculo complicado. Ao ouvir o barulho da porta, ela levantou o olhar, ajustando os óculos e deixando escapar um sorriso divertido ao me ver completamente derrotado.

— De volta do campo de batalha? — perguntou, sentando-se ao meu lado.

Suspirei profundamente, sentindo o peso do dia ainda sobre meus ombros.

— Se aquilo é um campo de batalha, eu sou o soldado raso que esqueceram de treinar — respondi, cobrindo os olhos com as mãos.

Clara riu, claramente se divertindo com o meu drama.

— O que aconteceu hoje? Mais missões impossíveis?
— Você não faz ideia. Primeiro, o fornecedor resolveu confundir os endereços e quase perdi metade do dia tentando resolver isso. Depois, derrubei a caneca de café da minha chefe. — Eu parei por um instante, lembrando do olhar dela. — E, para piorar, fui flagrado encarando a Srta. enquanto ela saía da minha mesa. Foi… constrangedor.
— Espera aí! Como assim "encarando"? Você ficou olhando para ela? ! — Sua risada ecoou pela sala.
— Não foi isso! — protestei, levantando as mãos em defesa. — Foi mais… um momento de distração. Ela estava saindo, e eu… bem, minha mente desligou por um segundo.
— Me conta tudo — Clara comentou, claramente ansiosa pelos detalhes mais embaraçosos.
— Não foi nada demais. Ela só fez questão de comentar algo como: “Ou você prefere observar enquanto eu saio?” — imitei o tom dela, com um toque exagerado para dramatizar.

Clara quase caiu de tanto rir.

, isso é hilário! Você está começando bem nesse emprego. Primeiro caneca derrubada, agora olhar de cobiça. O próximo passo é declarar seu amor.
— Para, Clara. Não tem nada a ver com isso. — Eu balançava a cabeça, mas sabia que minhas orelhas estavam ficando vermelhas. — Ela é minha chefe. É fria, exigente e, sinceramente, quer minha cabeça a qualquer momento.

Clara levantou uma sobrancelha, ainda sorrindo.

— Fria? Exigente? Não é o que parece. Se ela fez piada, talvez esteja te testando. Ou talvez… — Ela fez uma pausa dramática, apoiando o queixo na mão. — Talvez ela esteja te achando interessante também.
— Clara! — exclamei, pegando uma almofada e jogando nela, o que só a fez rir ainda mais.

Ela se levantou do sofá, ajeitando as almofadas antes de ir para a cozinha, mas continuou rindo enquanto lançava mais um comentário:

— Só digo uma coisa: essa sua chefe parece mais interessante do que você admite. E talvez… só talvez… ela esteja notando você mais do que você pensa.

Fiquei ali no sofá, cruzando os braços atrás da cabeça enquanto encarava o teto. Tentei ignorar as palavras da Clara, mas elas ecoavam como um tambor. "Mais interessante do que você pensa"? O que ela queria dizer com isso? Balancei a cabeça, tentando afastar as imagens que surgiam. Eu sabia que, no fundo, aquela última frase dela não era tão fácil de descartar quanto eu gostaria. Havia algo perturbadoramente incômodo — ou talvez intrigante — na ideia de que pudesse estar me notando mais do que eu imaginava.



O relógio na parede marcava quase nove da noite, mas sair dali ainda não era uma opção. O escritório estava mergulhado em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo som ritmado do teclado e pelo zumbido distante da cidade lá fora. Minha mesa era um campo de batalha de planilhas abertas, contratos amassados e anotações rabiscadas, cada papel um reflexo da minha mente inquieta.
O evento era amanhã. Passei os últimos dias mergulhado nisso, ajustando cada mínimo detalhe, revisando fornecedores, antecipando possíveis crises. Mas a verdade era que eu nunca tinha feito algo dessa magnitude antes. Nunca tive tanto em jogo. Ser secretário de já era um teste de resistência diária, mas agora parecia um verdadeiro campo minado, onde qualquer erro, por menor que fosse, poderia custar caro.
E o peso disso estava esmagando meus ombros.Passei a mão pelo cabelo, soltando um suspiro pesado. O cronograma piscava na tela do computador, cada linha carregada de compromissos, horários e responsabilidades. Já tinha revisado tudo pelo menos dez vezes, mas a sensação incômoda de que algo estava errado não me abandonava.
Talvez fosse apenas o nervosismo natural de um evento desse porte.
Ou talvez fosse .
Pisquei algumas vezes, tentando afastar o cansaço que pesava nos olhos. Ainda não era hora de parar. Pelo menos, não até eu ter certeza absoluta de que tudo estava alinhado. Peguei o celular e comecei a disparar mensagens para a equipe, reforçando prazos, confirmando entregas. Alguns responderam quase de imediato, ainda tão alertas quanto eu. Outros, provavelmente já estavam dormindo.
Sortudos.
Depois de mais uma hora de checagens e ajustes, não havia mais nada que eu pudesse fazer ali. Peguei minha mochila, vesti o casaco e saí do escritório, sentindo a exaustão pesar no corpo.
Amanhã será um dia longo.
E eu precisava, pelo menos, fingir que ia descansar.
Chamei um Uber. Não queria perder tempo no transporte público, só queria chegar logo em casa. O trajeto foi rápido, cerca de vinte e poucos minutos, mas senti cada segundo se arrastar. Quando finalmente atravessei a porta do apartamento, o silêncio me envolveu.
O ambiente estava escuro, exceto pela luz fraca da luminária na sala.
Soltei um suspiro, jogando as chaves sobre a mesa de entrada. Tirei os sapatos, aliviado por me livrar deles depois de um dia exaustivo. O plano era ir direto para o quarto, tomar um banho quente e, quem sabe, tentar dormir pelo menos algumas horas. Mas, ao passar pelo corredor, notei a porta de Clara entreaberta.
Me aproximei e, ao olhar para dentro, a encontrei adormecida sobre a escrivaninha. Livros de cálculo, folhas rabiscadas e uma xícara de café já pela metade a cercavam como se fossem parte dela. O rosto descansava sobre um dos cadernos abertos, os óculos levemente tortos.
Sorri, balançando a cabeça.
Minha irmã sempre foi assim — determinada, teimosa e completamente obcecada com os estudos. A faculdade de Engenharia não era fácil, e Clara levava aquilo a sério. Talvez até demais.
Com cuidado, fechei o livro onde ela repousava a cabeça e tirei os óculos do rosto dela, deixando-os ao lado. Peguei o moletom jogado na cadeira e cobri seus ombros.

— Clara — chamei baixinho, tocando seu braço de leve. Ela se mexeu, soltando um murmúrio incompreensível.
— Ei, dormindo assim você vai acordar com a coluna destruída. Anda, vamos para a cama.

Ela resmungou algo, ainda de olhos fechados.

— Só mais cinco minutos…

Revirei os olhos, sorrindo de canto.

— Sem "cinco minutos", Clara. Levanta.

Passei um braço por seus ombros e a ajudei a se erguer. Meio sonolenta, ela se apoiou em mim, tropeçando levemente enquanto caminhava até a cama.

— Odeio cálculo… — murmurou, afundando no colchão assim que se deitou.
— Jura? Nunca teria adivinhado — brinquei, puxando o lençol sobre ela.

Ela soltou um som indefinido, já voltando a dormir antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa. Balançando a cabeça, apaguei a luz do abajur e saí do quarto em silêncio, fechando a porta com cuidado.
Mal tinha encostado no guarda-roupa para pegar meu pijama quando o celular vibrou sobre a mesa de cabeceira.
.
Óbvio.
O cansaço bateu com força, como uma onda me puxando para baixo, mas ignorar a ligação não era uma opção. Respirei fundo, tentando afastar a exaustão, e deslizei o dedo pela tela antes que chamasse mais uma vez.

falando.

A voz dela veio afiada, cortante como um bisturi.

— Você esqueceu de checar a entrega dos brindes personalizados. — Não era uma pergunta. Era uma acusação.

Senti o estômago afundar.

— Eu… eu chequei. A transportadora garantiu que chegaria pela manhã — tentei manter um tom firme, mas o tremor quase imperceptível na minha voz me denunciou.

— "Garantiu" não é certeza, . — não hesitou. Seu tom era frio, controlado, sem um traço de paciência. — Você sabe o que acontece quando algo dá errado em eventos como esse?

Minha garganta secou.

— Eu… eu sei, , mas eu conferi, de verdade. Eles me deram certeza…
— E você confiou? — O silêncio que se instalou do outro lado da linha foi pior do que qualquer grito.

Meu peito apertou.

— Eu… achei que estivesse resolvido. — Minha voz saiu mais baixa do que eu queria, quase um sussurro.
— "Achou" não é suficiente.

Fechei os olhos, sentindo o peso das palavras dela esmagando meu peito.

— Esse evento não pode ter erro. — Agora o tom dela era mais comedido, mas nem por isso menos implacável.

Minha mente girava, revirando cada detalhe do cronograma, tentando encontrar um ponto de falha, uma forma de garantir que tudo saísse conforme o planejado.
Passei a mão pelo rosto, tentando conter o suor frio na nuca.

— Eu vou ligar para a transportadora de novo. Te mando uma mensagem assim que tiver uma resposta definitiva.

ficou em silêncio por um instante, como se estivesse decidindo se minha resposta era suficiente.

— Certo. Eu vou esperar.

A chamada foi finalizada.
O ar saiu dos meus pulmões em um longo suspiro enquanto eu deixava o celular cair sobre o colchão. Meu coração ainda martelava contra o peito, e eu podia sentir o aperto ansioso na garganta.
Ótimo. Isso significava que eu não ia dormir tão cedo.
Peguei o celular novamente e, com os dedos trêmulos, disquei o número da transportadora. O telefone chamou três vezes antes de alguém atender.

— Transportadora Estrela, boa noite.
— Boa noite… — engoli em seco. — Aqui é , da equipe da . Eu preciso confirmar a entrega dos brindes personalizados para o evento de amanhã.

O atendente demorou alguns segundos para responder, o som do teclado ecoando através da linha. O silêncio entre cada clique parecia se estender por uma eternidade. Meu estômago apertou.

— Deixa eu ver aqui… certo, temos a entrega agendada para às sete da manhã.

Exalei um pouco do ar que estava prendendo.

— Ótimo, então está tudo certo?
— Na verdade…

O sangue gelou nas minhas veias.

— O que?
— O caminhão com essa carga saiu para entrega hoje à tarde, mas houve um problema na rota. Uma peça quebrou, e o motorista teve que voltar para a base.

O peito ficou pesado, como se um bloco de cimento tivesse sido jogado em cima de mim.

— E quando o caminhão vai sair de novo?
— Provavelmente pela manhã, mas não temos um horário exato ainda.

Fechei os olhos, sentindo uma onda de desespero subir pela garganta.

— Isso não pode atrasar. O evento começa cedo, e os brindes precisam estar no local antes da montagem final.
— Entendo, senhor, mas dependemos do conserto do veículo. Podemos tentar transferir a carga para outro caminhão, mas não posso garantir nada até a equipe técnica avaliar.

Minha mente corria em círculos, buscando soluções que eu não tinha. Passei a mão pelo rosto, tentando manter a calma.

— Eu preciso de uma confirmação o mais rápido possível. Isso é essencial.
— Vou encaminhar sua solicitação para o setor responsável. Podemos te dar um retorno em até…
— Não, não, eu preciso de uma resposta agora! — interrompi, e só percebi a urgência na minha voz quando já era tarde demais para disfarçar. — Por favor, esse evento não pode ter erro.

O atendente soltou um suspiro audível do outro lado.

— Vou ver o que consigo fazer. Me dá dez minutos.

Dez minutos. O que eram dez minutos quando minha noite já estava arruinada?

— Tudo bem. Vou aguardar.

Desliguei e encarei o teto.
Meu coração batia acelerado, e eu sentia o suor frio nas mãos. Peguei o celular, abrindo a conversa com .

: Estou resolvendo. A transportadora teve um problema com o caminhão, mas estou pressionando por uma solução.

O status ficou online, e em segundos, a resposta veio.

: Como assim um problema? Você não confirmou isso antes?

Engoli em seco.

: Eles disseram que estava tudo certo. Só descobriram o problema agora.
: Isso é inaceitável. Você tem certeza que vão entregar a tempo?

Eu não tinha. Mas não podia dizer isso.

: Estou pressionando para garantir que sim. Vou te atualizar em dez minutos.

Ela visualizou, mas não respondeu.
Ótimo. Agora, além do estresse, tinha a expectativa dela pesando ainda mais sobre mim.
Olhei para o relógio. Três minutos se passaram. Me joguei na cama, encarando o teto, o celular ainda firme na mão. O sono já não era mais uma possibilidade. Tudo o que eu podia fazer era esperar.
O relógio marcava exatos nove minutos quando o celular vibrou novamente. Atendi antes mesmo do segundo toque. A voz do atendente agora parecia mais firme, mas ainda carregava aquele tom burocrático que me irritava.

— Senhor, conseguimos transferir a carga para outro caminhão. A entrega dos brindes está confirmada para às seis e meia da manhã, sem atrasos.

Soltei um suspiro tão profundo que meu corpo inteiro pareceu relaxar por um instante.

— Isso é certeza?
— Sim, senhor. O novo caminhão já está carregado e sairá daqui a pouco. Podemos compartilhar o contato direto do motorista caso precise acompanhar a entrega.
— Sim, por favor. Isso ajudaria muito.

Peguei um bloco de notas e anotei os detalhes enquanto ele ditava o número. Mesmo com a garantia da transportadora, eu não podia correr riscos.
Abri a conversa no WhatsApp e, com os dedos menos trêmulos, digitei:

: A transportadora conseguiu transferir a carga para outro caminhão. A entrega está confirmada para às 6h30, sem atrasos. Me passaram o contato direto do motorista caso precisemos acompanhar.

O status ficou online quase no mesmo instante.

: Ótimo. Me manda o contato do motorista.

Fiz isso imediatamente.
Encostei a cabeça no travesseiro, sentindo o peso do dia esmagar meu corpo. O celular ainda estava na minha mão, mas, pela primeira vez naquela noite, não vibrava.

Fechei os olhos.
Amanhã será um dia longo.
E tudo que eu podia fazer agora era esperar.

💻👠

A noite havia sido cruel. Depois da ligação com a transportadora, das mensagens trocadas com e da adrenalina que me manteve desperto por horas, o sono veio em pedaços, fragmentado e instável. Cochilei por duas horas, talvez três, antes do despertador ecoar pelo quarto como um soco direto na cabeça.
Cada músculo do meu corpo protestou quando me arrastei para o banheiro. O rosto refletido no espelho me encarava com olheiras profundas, denunciando o cansaço que eu tentava ignorar. Tomei um banho frio, na esperança de afastar a exaustão que parecia grudada em mim como um peso invisível.
Sem tempo para café da manhã ou qualquer resquício de descanso, me vesti rápido, conferi as últimas mensagens no celular e segui para o local do evento.
O dia passou em um borrão de ajustes finais, confirmações com fornecedores e reuniões rápidas com a equipe. Quando percebi, o relógio já marcava 16h30, e o salão começava a ganhar vida.
Agora, parado no centro do espaço, vendo tudo tomar forma diante dos meus olhos, percebia que cada segundo de tensão, cada nó no estômago e cada ameaça de desastre tinham valido a pena.
Às 17h em ponto, os primeiros convidados começaram a chegar. Respirei fundo, deixando o olhar percorrer o espaço. Tudo estava exatamente como eu tinha planejado. Não, melhor do que eu tinha planejado.
As luzes estavam na intensidade perfeita, destacando os arranjos florais e a decoração sofisticada. A equipe de garçons se movia com precisão, servindo champanhe e aperitivos como se tivessem ensaiado aquilo por semanas. O burburinho de conversas e os murmúrios de admiração preenchiam o ambiente, sinalizando que tudo estava seguindo conforme o esperado.
Feito.
E então, como se tivesse sido programada para aparecer exatamente naquele momento, entrou.
O ar pareceu mudar ao redor dela.
Minha garganta fechou de imediato, como se o próprio oxigênio tivesse ficado pesado demais, difícil de engolir. Um nó se formou, apertando minha respiração, meu peito, minha sanidade.
O vestido que ela usava era um espetáculo por si só — justo o suficiente para desenhar as curvas dela com precisão quase indecente. O tecido escuro abraçava sua cintura, descendo suavemente sobre os quadris bem esculpidos antes de cair com uma elegância calculada. Mas o problema não era só o vestido. O problema era dentro dele.
A postura firme, a forma como os passos ecoavam pelo salão, a maneira exata como seu quadril se movia, desenhando um ritmo hipnotizante sob o tecido. E a bunda… esculpida, impecável. Talhada por Deus e aperfeiçoada pelo diabo.
Meu olhar ficou preso ali por um segundo a mais do que deveria.
Talvez dois.
Talvez tempo o suficiente para notar.
Um calor subiu do meu pescoço para o rosto, queimando minhas orelhas. Engoli seco, tentando disfarçar, puxando levemente a gola da minha camisa. Mas os dedos inquietos me denunciavam.
Pisquei algumas vezes, forçando minha mente a recobrar o foco.
Mas como, se tudo dentro de mim parecia um completo caos?
Seu olhar, afiado como sempre, encontrou o meu com precisão cirúrgica. Ela não desviou, não fingiu que não viu — pelo contrário. Seu queixo ergueu ligeiramente, os lábios curvaram em algo que não chegava a ser um sorriso, mas carregava a intenção de um.
Ela sabia.
Ela viu tudo.
Meu corpo travou no instante em que ela começou a se mover em minha direção. Passos lentos, calculados, como se estivesse me dando tempo para processar o que estava acontecendo — ou talvez apenas para se divertir com meu desconforto.
O vestido parecia deslizar sobre a pele dela a cada movimento, e, mesmo que eu quisesse, não conseguiria desviar o olhar.
parou bem na minha frente, perto o suficiente para que seu perfume me atingisse como um golpe certeiro — sofisticado, levemente amadeirado, com um toque floral. Um aroma que parecia se espalhar pelo ar e pela minha pele.

.

A forma como ela pronunciou meu nome fez um arrepio perigoso percorrer minha espinha.
Droga.
Eu não podia sentir isso.
Era errado.
Ela era minha chefe.
Tentei me recompor, endireitando a postura como se isso fosse apagar qualquer evidência do que meu corpo estava sentindo.

— S-Senhorita .

Minha voz saiu baixa demais. Hesitante demais. Precisei limpar a garganta antes de tentar continuar, mas sabia que não adiantaria. Meu desconforto já estava escancarado diante dela.
inclinou levemente a cabeça, os olhos me estudando com um interesse que eu não sabia se era genuíno ou apenas mais um de seus jogos. Ela me analisava como quem examina algo curioso — não um erro, nem um acerto, mas uma incógnita.
E então, por um instante, ela desviou o olhar.
Para o salão.
Para as luzes, os detalhes, a atmosfera que eu havia meticulosamente construído.

— Parece que você conseguiu.

A voz dela estava baixa, quase como um pensamento solto.Meu coração deu um salto estranho.

— Consegui?

Minha garganta ainda estava seca, então minha pergunta saiu mais rouca do que eu esperava. voltou a olhar para mim, como se medisse as palavras antes de soltá-las.

— Me surpreender.

Eu pisquei.
As palavras dela pesaram dentro de mim de um jeito inesperado. Não era ironia. Não era um teste. Era fato.
Por um momento, não soube o que responder.
E percebeu.
Ela sempre percebe.
Os lábios dela se curvaram de leve, e ela girou a taça de champanhe entre os dedos, como se estivesse apenas esperando minha reação. Me testando. Respirei fundo, tentando encontrar minha voz.

— O-obrigado…

Minha voz quase falhou.
Droga.
Limpei a garganta rapidamente, tentando parecer menos patético, mas já era tarde demais. O estrago estava feito. continuou me encarando, os olhos levemente estreitados, analisando cada nuance da minha reação.
Ela sabia o efeito que causava. E, pior ainda, sabia que eu sabia.
Eu deveria dizer algo mais. Talvez algo profissional, um "fico feliz em atender às suas expectativas" ou qualquer frase pronta que me fizesse parecer menos desnorteado. Mas minha mente estava um caos completo.
Tudo que consegui fazer foi desviar o olhar por um segundo e balançar a cabeça, murmurando:

— Eu só… fiz o meu trabalho. — ergueu uma sobrancelha.

Ela não disse nada.
Não precisou.
Apenas bebeu um gole de champanhe e se afastou, caminhando de volta para os outros convidados como se nada tivesse acontecido.
Meus pulmões finalmente puxaram ar, mas minha respiração ainda estava descompassada.
Droga.
Se aquilo foi um elogio, então foi o mais perigoso que eu já recebi.
Depois desse momento caótico dentro da minha própria cabeça, me forcei a voltar ao foco. O evento estava acontecendo, e eu precisava garantir que tudo continuasse rodando perfeitamente. Passei pelos fornecedores, chequei a equipe de garçons, conferi com a produção se tudo estava no horário.
E estava. As apresentações seguiram conforme o cronograma. Os convidados pareciam satisfeitos. Nenhum problema grave surgiu.
Tudo fluía como planejado.
Era estranho. Depois de dias de tensão, noites mal dormidas e o peso de mil responsabilidades nos ombros, eu deveria estar aliviado. Mas tudo que eu conseguia sentir era… cansaço. Eu estava exausto.
Meu corpo ainda funcionava no piloto automático, supervisionando cada detalhe, garantindo que cada etapa seguisse conforme o esperado. Mas, por dentro, minha mente já estava implorando para desligar.
Quando o último brinde foi feito e os convidados começaram a se dispersar, percebi que finalmente podia respirar. O evento foi um sucesso. Nenhum erro. Nenhum desastre.
Eu tinha conseguido.
Mas ainda faltava um detalhe.
.
Ela estava no canto do salão, cercada por alguns executivos.
Intocável. Impecável. Intimidante.
Como sempre.
Eu não esperava que ela dissesse nada para mim. não era do tipo que distribuía palavras gentis. Se eu esperava um "bom trabalho" ou qualquer coisa que reconhecesse minha dedicação, estava fadado à decepção.
Mas então, quando terminou sua conversa e se virou para sair, seus olhos encontraram os meus.
E ela parou.
O tempo pareceu desacelerar quando, sem pressa, começou a caminhar na minha direção.

.

Minha exaustão pesava sobre mim, mas me endireitei instintivamente, esperando o que viesse a seguir. O que ela diria?
O que eu deveria dizer?
Mas não era do tipo que prolongava conversas desnecessárias. Ela me olhou nos olhos, sua expressão neutra.

— Muito bom.

Foi só isso.
Duas palavras. Simples. Precisas.
Mas o peso delas…
Veio direto para mim.
Minha garganta secou.

— Fico feliz que tenha dado tudo certo, — murmurei, sem saber muito bem como reagir.

manteve o olhar por um segundo a mais do que o necessário, os lábios ligeiramente pressionados, como se estivesse decidindo se falaria mais alguma coisa. Mas então, ela apenas assentiu.
E, sem mais palavras, virou-se e saiu.
Fiquei ali, parado, sentindo o peso de tudo finalmente me atingir.
O cansaço. A tensão. O alívio.
E algo mais.
Algo que eu não sabia nomear.
Mas, pela primeira vez na noite, um sorriso leve e exausto se formou no canto dos meus lábios. Porque, para , aquilo foi um agradecimento.
E, sinceramente?
Era o suficiente.

💻👠

Subi as escadas lentamente. Meu corpo estava no limite. Cada músculo protestava a cada mínimo movimento, e minha mente… bem, essa já tinha se desligado fazia tempo. Quando cheguei no meu andar, puxei as chaves do bolso e destranquei a porta do apartamento. Luz baixa na sala. O cheiro de café fresco ainda pairava no ar, misturado com um leve aroma de lavanda — provavelmente algum incenso que Clara acendeu.
Joguei as chaves no aparador e soltei um longo suspiro, arrastando os pés até o sofá. Meu corpo caiu sobre ele como se tivesse sido puxado pela gravidade, e ali fiquei, completamente derrotado. Ouvi passos leves vindo do corredor.

— Finalmente — Clara surgiu na sala, vestindo uma calça de moletom e uma camiseta larga da faculdade. Os cabelos estavam presos em um coque desarrumado, e os óculos estavam meio tortos no rosto.

Ela cruzou os braços, me olhando como quem já sabia a resposta da pergunta que estava prestes a fazer.

— Você comeu alguma coisa hoje?

Minha resposta foi um silêncio prolongado. Clara revirou os olhos e bufou.

— Eu sabia.

Antes que eu pudesse protestar, ela desapareceu na cozinha.
Fiquei ali, largado no sofá, encarando o teto e sentindo meu corpo pesado, quase entorpecido. O evento foi um sucesso. Eu deveria estar aliviado. Mas, no momento, tudo que eu queria era dormir por uma semana inteira.
Minutos depois, Clara voltou, segurando um prato com um sanduíche e um copo de suco.

— Come.
— Eu só quero dormir…
.

O tom de voz dela me fez abrir um olho.

— Come — ela repetiu, dessa vez mais devagar, me estendendo o prato. — Você pode dormir depois.

Peguei o sanduíche e mordi sem nem pensar, percebendo só então o quanto estava faminto. Clara se jogou na poltrona ao lado, puxando um cobertor para cobrir as pernas.

— E então? Como foi o grande dia? — Mastiguei devagar, tentando reunir forças para responder.
— Caótico. — Ela riu pelo nariz.
— Sabia que você ia dizer isso.
— Eu quase morri umas três vezes hoje — exagerei, largando a cabeça contra o encosto do sofá. — A transportadora atrasou os brindes, me ligou no meio da madrugada praticamente me crucificando, tive que implorar para conseguirem um caminhão substituto… Ah, e me elogiou.

Clara arregalou os olhos.

— Espera… o quê?
— Ela me elogiou. Bom, do jeito dela, né? — Dei um meio sorriso, cansado. — Disse que eu a surpreendi. — Clara soltou um assobio baixo.
— Isso vindo da é praticamente um prêmio.
— Ou um prenúncio de que minha vida vai ficar ainda mais difícil. — Ela riu e pegou o controle da TV, mudando de canal sem prestar muita atenção.
— Você gosta de trabalhar com ela? — Parei no meio da mordida.

Minha mente travou.
Gosto?
A palavra ecoou dentro de mim, reverberando como um sino distante.
Como eu deveria responder a isso?
Trabalhar para não era simplesmente um trabalho. Era sobreviver a um campo minado onde qualquer deslize poderia custar caro. Só fazia uma semana e eu já sentia como se estivesse correndo contra o tempo, sempre tentando acompanhá-la, tentando não tropeçar, tentando entender.
Porque era rápida demais. Exigente demais.
Avassaladora.
E, ao mesmo tempo, impossível de ignorar.
Meu instinto gritava que eu deveria manter distância. Manter tudo estritamente profissional. Mas então, havia aqueles momentos. Pequenos instantes onde o olhar dela ficava mais afiado, onde seu silêncio parecia carregar mais do que palavras, onde eu sentia que estava sendo avaliado como uma peça em um jogo que eu sequer entendia as regras.
E, nesses momentos, vinha o frio na barriga. Aquele desconforto estranho. Uma inquietação que eu ainda não sabia nomear. Engoli seco e voltei a mastigar devagar, tentando ganhar tempo, tentando formular uma resposta que não me entregasse.

— Eu… eu gosto do desafio — murmurei, desviando o olhar. Clara arqueou uma sobrancelha, cética.
— Sei.

Ela conhecia bem demais meus trejeitos. O jeito que evitei contato visual. O tempo que levei para responder. Meu maxilar tensionou. Suspirei e terminei o sanduíche, sentindo o peso do dia se arrastar sobre meus ombros.

— Você devia descansar — Clara disse, desligando a TV e se levantando.
— Concordo.
— E amanhã, tenta não deixar essa mulher acabar com você. — Soltei uma risada baixa, sem humor.
— Sem promessas.

Ela revirou os olhos, mas antes de sair, inclinou-se e bagunçou meu cabelo do jeito irritante que sempre fazia. Fiquei ali, sozinho na sala silenciosa, sentindo o cansaço finalmente me alcançar.
Antes que pudesse organizar meus pensamentos, meu celular vibrou sobre a mesa de centro. Suspirei, achando que poderia ser uma notificação qualquer.
Mas ao olhar a tela, meu corpo ficou tenso.
Era ela.
O sono fugiu dos meus olhos na mesma hora.
Respirei fundo, meu polegar pairando sobre a tela por um instante antes de atender. Apesar de tentar me preparar, minha voz ainda soou ligeiramente hesitante quando falei:

falando.

A voz dela veio sem rodeios, direta, objetiva, como sempre:

— Amanhã, às 7h, quero que me encontre na entrada da empresa. Temos um compromisso externo. Não se atrase.

Meu corpo se endireitou automaticamente no sofá, meu cérebro tentando se ajustar à velocidade com que jogava informações. Peguei o caderno ao meu lado e rabisquei rapidamente a informação.

— Entendido, Srta. . Algum detalhe que eu deva saber sobre esse compromisso? — perguntei, forçando um tom profissional e tentando esconder a confusão interna.

Houve uma pausa.
Um silêncio curto, mas carregado.
Por um momento, achei que a ligação tivesse caído, mas então, falou novamente.

— Apenas esteja pronto. Formal. Discreto. Você saberá o suficiente quando chegar.

Minha testa franziu levemente.

— Formal? Quer dizer, terno e gravata?

Houve outro silêncio. Curto, mas suficiente para eu sentir o peso da resposta antes mesmo dela vir.

— Espero que não precise explicar o significado de "formal", — respondeu ela, seu tom levemente irônico, mas sem perder a paciência calculada.

O clique seco no telefone marcou o fim abrupto da ligação.
Fiquei segurando o celular, tentando processar o que acabara de acontecer.
O que diabos estava planejando?
Minha mente começou a traçar cenários improváveis. Uma reunião com investidores importantes? Uma negociação sigilosa? Ou algo mais bizarro, como me usar como fachada para algum compromisso pessoal?
Com , tudo parecia possível.
Soltei um suspiro pesado, encostando no sofá e encarando o teto. Trabalhar com era como viver em um jogo de xadrez onde ela sempre parecia estar três movimentos à frente. Eu sabia que minha vida nunca mais seria tranquila enquanto eu estivesse neste emprego. Mas o que me preocupava não era isso. O que me preocupava era o fato de que, mesmo sabendo do caos que vinha com ela… Uma parte de mim queria jogar esse jogo.



Depois do evento, tudo que meu corpo queria era descanso, mas minha mente não permitia. O dia havia sido uma verdadeira maratona, repleto de imprevistos, cobranças e a pressão sufocante de garantir que cada detalhe saísse impecável. O som incessante das notificações, o ritmo frenético dos prazos e, claro, a presença sempre vigilante de haviam me deixado exausto. O plano era simples: um banho quente, uma cama confortável e algumas horas de sono profundo. Mas, assim que encostei a cabeça no travesseiro, a lembrança da ligação dela invadiu meus pensamentos, substituindo o cansaço pelo incômodo da incerteza.
O que exatamente ela queria comigo tão cedo? O tom da sua voz não indicava urgência, nem parecia ser sobre um compromisso rotineiro da empresa. Havia algo ali — um peso, um subtexto que eu não conseguia decifrar. Vindo de , isso era o suficiente para manter qualquer um acordado.
Depois de longos minutos de revirar na cama, aceitei que não conseguiria relaxar. O sono veio fragmentado, inquieto, e, quando o despertador finalmente tocou, eu já estava desperto há algum tempo, encarando o teto escuro do quarto. A madrugada ainda dominava a cidade quando me levantei, sentindo o frio do piso debaixo dos pés. O ar gelado parecia penetrar nos ossos enquanto eu tomava um banho rápido para afastar o torpor da noite mal dormida.
Cada movimento naquela manhã foi acompanhado por uma mistura de curiosidade e ansiedade. Não sabia o que esperar, mas algo dentro de mim dizia que essa não seria uma manhã comum. Escolhi o melhor terno que tinha — formal, como ela havia especificado — e me certifiquei de que até mesmo os sapatos estavam impecavelmente polidos. não era do tipo que deixava algo passar despercebido, e se ela fazia questão de um código de vestimenta, era melhor seguir à risca.
Cheguei à empresa com dez minutos de antecedência, tentando ignorar o desconforto daquela sensação de antecipação. A entrada estava quase deserta, exceto por , que aguardava ao lado de um carro preto com vidros escurecidos. Diferente da correria do evento no dia anterior, ela parecia completamente sob controle, como se aquele momento já estivesse milimetricamente planejado.
Ela estava impecável, como sempre, mas havia algo quase irritante no quão deslumbrante ela conseguia parecer tão cedo. O vestido cinza, elegante e perfeitamente ajustado, realçava sua postura altiva, e cada detalhe — do tecido bem cortado ao brilho discreto dos brincos — exalava poder. Para completar, ela usava óculos de sol grandes, que escondiam seus olhos, mas não diminuíram sua presença intimidadora. Mesmo sem ver seu olhar diretamente, eu sabia que estava sendo avaliado, como se ela conferisse mentalmente cada item da lista de exigências que esperava de mim.
estava impecável, como sempre, mas havia algo quase irritante no quão deslumbrante ela conseguia parecer tão cedo. O vestido cinza, perfeitamente ajustado, destacava sua postura altiva, e os óculos de sol adicionavam um ar de mistério e autoridade. Ela me avaliou rapidamente, como se estivesse conferindo mentalmente cada item da lista de exigências que esperava de mim.

— Pelo menos você entende o conceito de pontualidade — disse ela, abrindo a porta traseira do carro com um movimento eficiente e sem cerimônia.
— Sempre — respondi, tentando soar confiante enquanto entrava no veículo, embora meu coração batesse mais rápido do que eu gostaria de admitir.

O interior do carro era luxuoso, com bancos de couro e um leve aroma amadeirado que se misturava com o perfume marcante de . O silêncio entre nós era quase palpável, interrompido apenas pelo som suave dos pneus contra o asfalto. Ela digitava algo no celular com rapidez, o rosto iluminado pela tela, completamente imersa no que quer que estivesse fazendo.
Eu estava prestes a perguntar para onde estávamos indo quando o telefone dela vibrou na mão. suspirou ao ver o nome no visor, a expressão se fechando em uma linha tensa antes mesmo de atender.

— Mãe, estou ocupada. O que foi? — Sua voz saiu firme, mas havia um leve resquício de impaciência.

A voz do outro lado era abafada, mas carregava um tom de urgência. manteve a expressão impassível, mas sua postura ficou mais rígida. Seus dedos, antes ágeis no celular, agora estavam parados, como se ela já antecipasse o incômodo que estava por vir.

— Agora? — Ela franziu o cenho, trocando um olhar rápido comigo antes de desviar os olhos. — Eu tinha outro compromisso importante hoje.

A resposta do outro lado foi curta, direta. fechou os olhos por um breve momento, inspirou fundo e soltou o ar lentamente, como se estivesse tentando conter uma resposta mais dura.

— Certo. Estou indo.

Ela encerrou a ligação com um toque firme na tela e permaneceu imóvel por um instante, encarando o nada à sua frente, reorganizando os pensamentos. Então, sem nem me olhar, anunciou:

— Mudança de planos.

Ergui uma sobrancelha, notando o desconforto contido na postura dela.

— Algo grave?

Ela virou o rosto para a janela, como se quisesse estar em qualquer outro lugar.

— Minha mãe quer me ver. Agora. E quando Regina exige alguma coisa, a única resposta aceitável é ‘sim, senhora’.

O nome soou com um peso diferente. nunca falou de sua família. Eu me ajeitei no banco, observando-a.

— Então, em vez de irmos aonde íamos, vamos visitar sua família? — perguntei, tentando captar qualquer nuance no tom dela.

Ela soltou um suspiro resignado e recostou-se no assento.

— Parece que sim.

O desconforto era visível, mas, ao invés de falar mais sobre o assunto, voltou a mexer no celular com a mesma expressão concentrada de antes, como se quisesse minimizar a inconveniência da mudança de planos.

— Cancele a visita à Rafa Kalimann e peça para remarcar para outro horário — ordenou , sem sequer levantar os olhos do celular.

Pisquei algumas vezes, tentando absorver a informação.

— Espera... a gente ia encontrar a Rafa Kalimann hoje? — perguntei, atônito.

me lançou um olhar impaciente, como se minha surpresa fosse um incômodo desnecessário.

— Sim. Mas agora temos outra prioridade. Só remarca. — Sua atenção continuava na tela do celular, os dedos se movendo rapidamente enquanto digitava algo. — Já mandei o contato da assessoria dela para você. Como já não é mais sigilo, pode resolver isso sozinho.

Minha mente levou alguns segundos para processar aquilo. Não era qualquer reunião que estava sendo adiada. Conseguir um encontro com uma das maiores influenciadoras digitais do país não tinha sido fácil. Esse era um dos compromissos mais estratégicos da empresa, e o descartou sem hesitação. Se ela estava disposta a mudar algo dessa magnitude, o que quer que estivesse acontecendo com Regina devia ser sério.
Ainda assim, algo em mim insistiu.

— Certo… Mas ela não vai ficar irritada? Quero dizer, essas pessoas têm agendas lotadas.

finalmente desviou os olhos do celular e me encarou por cima dos óculos escuros, inclinando-se levemente para frente. Mesmo sem ver seus olhos diretamente, eu sabia que estavam afiados como lâminas.

— Por isso quero que remarque, não que cancele! — rebateu, a voz firme e sem paciência. — Você está questionando minhas decisões agora, ?

Endireitei a postura no banco, levantando as mãos em um gesto de rendição.

— De jeito nenhum. Eu só… não esperava — admiti, tentando me recompor.

Ela soltou um pequeno suspiro, voltando ao celular, como se aquela troca de palavras tivesse sido uma perda de tempo.

— Ela pode ser Rafa Kalimann, mas eu sou . E meu tempo vale tanto quanto o dela.

Pisquei, surpreso com a confiança implacável dela. sempre foi determinada, mas ouvi-la dizer isso com tamanha convicção, sem um traço de dúvida, me fez estremecer. Não sabia dizer se era admiração ou apenas um leve frio na espinha por estar ao lado de alguém que enxergava o mundo dessa forma.
Engoli em seco, disfarçando qualquer reação exagerada.

— Claro — murmurei, mantendo minha expressão neutra. — Vou remarcar.

não respondeu, apenas continuou a digitar no celular, como se a conversa já estivesse encerrada e minha concordância fosse apenas uma formalidade.
Peguei meu próprio celular e comecei a digitar uma mensagem para a assessoria de Rafa Kalimann, explicando a necessidade da mudança de horário.
O carro parou suavemente em frente ao prédio, mas já estava abrindo a porta antes mesmo que o motorista tivesse a chance de fazê-lo.

— Estamos aqui — anunciou, saindo sem me esperar.

O som firme de seus saltos ecoou na calçada, cada passo carregando um propósito. Eu a segui, tentando não parecer deslocado. O interior do edifício era ainda mais imponente que o exterior. O mármore do chão refletia as luzes do lustre pendurado no teto alto, e tudo ali exalava sofisticação. Mas, apesar do luxo, a atmosfera parecia fria, distante — muito parecida com a mulher que me conduzia até uma sala privativa.
Lá dentro, uma mulher nos aguardava. Ela se ergueu da poltrona com uma calma meticulosamente controlada, sua presença ocupando todo o espaço antes mesmo que dissesse qualquer palavra. Seu rosto, embora mais maduro, era uma versão indiscutível de : os traços refinados, o olhar calculista e a postura impecável. Mas, diferente da filha, havia algo em Regina que me fez sentir um calafrio imediato.

— Mamãe — disse , sua voz precisa, cortante, mas sem um traço de afeto.

Regina abriu um sorriso polido, treinado na medida exata entre a civilidade e a superioridade. Não era um sorriso de boas-vindas, mas um aviso.

. Sempre tão ocupada. — Sua voz carregava um tom levemente reprovador, como se cada palavra fosse um lembrete sutil de uma falha.

manteve-se impassível.

— Porque eu priorizo compromissos que realmente exigem minha atenção.

Ela se sentou de frente para a mãe, cruzando as pernas com precisão calculada. Seus olhos estavam firmes, mas, mesmo de onde eu estava, percebi como seus dedos se entrelaçaram discretamente sobre o colo — um detalhe pequeno, mas revelador. Um resquício de nervosismo que provavelmente detestaria que alguém notasse.
O silêncio entre as duas era quase sufocante, um campo minado pronto para explodir a qualquer momento. Eu permaneci próximo à porta, sentindo-me um espectador inesperado de algo muito maior do que uma simples reunião familiar. A energia naquele ambiente não era apenas fria, era afiada, carregada de significados subentendidos e ressentimentos velados.
Regina quebrou o silêncio primeiro.

— Você sabia que hoje discutiríamos questões importantes — começou, sua voz doce em um tom ensaiado, mas que trazia consigo a firmeza cortante de quem já tinha essa conversa muitas vezes antes. — No entanto, parece que continua insistindo em ignorar os valores que a família te ensinou.

arqueou uma sobrancelha, sua expressão perfeitamente controlada, mas carregada de uma paciência à beira do esgotamento.

— Então foi para isso que me chamou aqui? — Sua voz era fria, mas havia um resquício de exasperação ali. — Esse tipo de conversa poderia acontecer a qualquer momento, mas, de alguma forma, sempre escolhe os momentos mais inconvenientes para tentar me demonizar.

Regina suspirou, inclinando levemente a cabeça como se ainda houvesse esperança de dobrar a filha à sua vontade.

— Família, . Construção. Estabilidade. Você realmente acredita que essa sua obsessão pelo trabalho te levará a algum lugar que importe? — Sua voz carregava um misto de censura e impaciência. — Trabalhar dessa forma, ignorando possibilidades mais… tradicionais. A forma como você conduz a empresa, como se fosse apenas sua. Isso é o reflexo de uma mulher que se recusa a aceitar seu verdadeiro papel.

respirou fundo. O gesto foi mínimo, mas, para alguém que a observava com atenção, era um sinal claro de irritação. Em pouco tempo de convivência, eu já havia aprendido a reconhecer esses pequenos sinais.

— Se ser ‘tradicional’ significa abrir mão da minha independência e dos meus objetivos para caber em um molde ultrapassado, então prefiro continuar sendo inadequada — rebateu, sua voz afiada e sem espaço para concessões.

Regina bufou suavemente, recostando-se na poltrona, os dedos ajustando seus brincos brilhantes com um ar calculado de frustração.

— E quanto à sua vida pessoal? Você realmente acredita que pode continuar assim para sempre? Sem um marido, sem filhos, sem ninguém para compartilhar sua vida? — Seu tom ficou mais gélido, como se cada palavra fosse projetada para atingir onde doía. — Você tem trinta e dois anos, . Está correndo contra o tempo. O que pretende fazer quando perceber que está sozinha?

O silêncio que se seguiu foi pesado. Como se a sala tivesse ficado menor, comprimida pela tensão entre as duas.
permaneceu impassível. Sua expressão era uma máscara esculpida na perfeição. Mas eu percebi a mudança. A rigidez sutil nos ombros, a respiração levemente mais profunda. Um controle absoluto, mas não inabalável.

— Faço o que precisa ser feito para garantir o meu sucesso — disse, cada palavra cuidadosamente medida. — E não sou ingênua o suficiente para acreditar que um relacionamento ou uma família garantem felicidade. Se minha independência te incomoda, lamento, mas não vou mudar.

Regina inclinou-se para frente, seu olhar perfurando , como se tentasse encontrar alguma rachadura na muralha que a filha havia construído ao longo dos anos.

— E o que você terá quando olhar para trás? — Sua voz baixou, mas ficou ainda mais cortante. — Dinheiro? Reconhecimento? Você pode até comandar um império, , mas isso não vai te abraçar à noite. — Um sorriso frio dançou nos lábios dela. — Um dia, você vai entender que o que realmente importa não está nas suas conquistas. Espero que, quando isso acontecer, não seja tarde demais.

Aquelas palavras caíram no ambiente como uma sentença.
Eu podia ver o peso delas em , mesmo que sua expressão permanecesse impecável. Ela não piscou, não reagiu. Mas, por um segundo, eu vi. A hesitação quase invisível, a tensão nos músculos que indicava que aquela conversa estava tocando algo profundo.
E foi aí que algo dentro de mim se moveu.
Não sei se foi o tom cortante de Regina ou a maneira sutil, mas evidente, como parecia travar uma guerra interna para não demonstrar qualquer abalo. Mas antes que percebesse, eu já estava me manifestando.
Limpei a garganta e dei um passo à frente.

— Com licença, mas acho que essa conversa precisa terminar por hoje. A Srta. tem uma agenda cheia e ainda precisa finalizar detalhes de um evento importante.

Os olhos de Regina deslizaram até mim, como se finalmente notasse minha presença ali. Seu olhar avaliativo pesou sobre mim por um instante antes de se voltar para , esperando alguma reprimenda à minha interferência. Mas, para minha surpresa, apenas assentiu.

tem razão — disse, sua voz firme, mas sem a rigidez de antes. — Eu já desmarquei uma reunião para estar aqui, não posso mais adiar nenhum compromisso.

Regina ficou imóvel por um instante, como se ponderasse se valia a pena insistir. Mas, por fim, ergueu-se da poltrona com um movimento ensaiado, ajeitando a saia do vestido como se estivesse limpando algo invisível.

— Ainda espero que você repense suas prioridades, . Estarei esperando quando perceber que estou certa.

também se levantou. Sua postura impecável, seu rosto inexpressivo como uma máscara meticulosamente esculpida. Mas, quando estendeu a mão para apertar a da mãe, seu aperto foi firme, quase desafiador.

— E eu espero que um dia você confie nas minhas decisões, mãe. Porque eu sei exatamente o que estou fazendo. Mas, se tudo o que tem para mim são críticas e tentativas de me moldar ao que você considera certo, talvez seja melhor não me chamar.

O olhar de Regina se estreitou por um instante, mas ela não rebateu. Apenas ergueu o queixo com a mesma altivez da filha e saiu da sala sem dizer mais nada.
Quando a porta se fechou atrás de Regina , o silêncio que ficou na sala era quase ensurdecedor. soltou um longo suspiro, passando a mão pelos cabelos — o primeiro gesto verdadeiramente humano desde que entramos ali. Pela primeira vez, o verniz impecável da sua postura cedeu, revelando o desgaste escondido sob camadas de controle e indiferença calculada.
Fiquei ali, observando-a, sentindo o peso invisível da tensão que ela se recusava a admitir. Era estranho ver alguém tão inabalável dar sinais, mesmo que sutis, de cansaço emocional. E mais estranho ainda era o fato de eu notar.
No caminho de volta para o carro, o silêncio continuou nos acompanhando, agora mais denso, quase palpável. caminhava com o mesmo porte altivo, mas seus passos pareciam mais lentos, como se o peso da conversa ainda estivesse grudado em seus ombros. Quando nos acomodamos no carro, ela virou o rosto para a janela, o olhar fixo em algum ponto perdido na paisagem urbana, embora eu duvidasse que enxergasse qualquer coisa ali fora.
O reflexo dela no vidro mostrava uma expressão que não combinava com a mulher que conheci nos escritórios da Domus. Não havia a rigidez habitual, nem o olhar calculado e afiado. Em vez disso, vi algo mais humano — um cansaço que ia além do físico, um desconforto que ela não conseguiria enterrar mesmo que tentasse.
Respeitei o espaço, deixando o silêncio preencher o carro. Mas, quando já achava que seguiríamos todo o trajeto assim, sua voz quebrou o vazio, baixa, desprovida da rigidez costumeira:

— Obrigada, . Por... intervir.

Foram apenas algumas palavras, mas o impacto foi maior do que qualquer discurso que ela pudesse fazer. A gratidão na voz dela não era comum. E o tom? Ali havia algo raro, quase uma rachadura na armadura — não fraqueza, mas uma vulnerabilidade crua que parecia difícil para ela admitir até para si mesma. Demorei um segundo para responder, escolhendo as palavras com cuidado, consciente da delicadeza do momento.

— Apenas achei que você precisava de uma pausa. — Tentei suavizar com um sorriso de canto, mas sabia que ela enxergava através de qualquer tentativa de aliviar o peso da situação.

virou o rosto para mim, seus olhos encontrando os meus com uma intensidade que me deixou inquieto. Não era o olhar crítico ou avaliativo de sempre. Havia algo mais ali. Algo que beirava o alívio, talvez até... gratidão genuína. Foi desconcertante.

— Talvez eu precisasse mesmo. — Sua voz saiu mais baixa, quase um sussurro, como se admitir isso fosse uma batalha interna.

Aquela confissão abriu espaço para uma pergunta que martelava em minha mente desde o início daquela visita.

— Posso perguntar algo? — arrisquei, esperando que ela não levantasse mais uma de suas barreiras.

Ela assentiu levemente, um gesto simples, mas que parecia carregar mais significado do que o habitual.

— Sempre foi assim entre você e sua mãe?

soltou um riso curto, sem humor. Cruzou os braços, como se o gesto fosse uma tentativa instintiva de se proteger de memórias incômodas.

— Sim. — O olhar dela se desviou para a janela novamente, como se buscar respostas lá fora fosse mais fácil do que encará-las diretamente. — Ela tem expectativas... inatingíveis. Para ela, sucesso só importa se vier acompanhado de um roteiro que ela mesma escreveu. Família perfeita, vida pessoal impecável, decisões alinhadas ao que ela considera certo.

Houve uma pausa. O tipo de silêncio que não era desconfortável, mas necessário. parecia pesar cada palavra, como se escolher o que dizer fosse tão importante quanto o que ela decidia esconder.
Decidi ir um pouco além.

— E você? — perguntei, minha voz mais suave, respeitando o terreno sensível que estávamos pisando. — O que você considera certo?

Ela demorou a responder. Os olhos continuaram fixos na paisagem que passava pela janela, mas era óbvio que estava longe dali, presa em pensamentos que não compartilharia com facilidade.

— Eu considero certo fazer o que é necessário. Para mim, sucesso é provar que posso chegar onde quero, independentemente das regras que tentam impor. — A firmeza estava de volta à voz dela, mas dessa vez havia algo mais. Não era apenas convicção — era uma defesa, quase um escudo.

Antes que o silêncio voltasse a se instalar, ela inverteu a pergunta, me pegando de surpresa:

— E você, ? O que considera sucesso?

Eu não esperava que ela demonstrasse interesse genuíno na minha opinião. Ainda mais em um momento como aquele.
Respirei fundo, processando a pergunta, antes de responder com honestidade:

— Acho que sucesso é conseguir viver com as escolhas que fazemos. E, se possível, encontrar um pouco de felicidade no caminho.

me olhou de lado, e, pela primeira vez, vi um sorriso diferente se formar em seus lábios. Pequeno, quase imperceptível, mas real.

— Uma visão... idealista. Mas interessante. — O tom dela não carregava sarcasmo, nem julgamento. Era sincero. E isso me pegou de surpresa.

O carro parou em frente à empresa. desceu com a mesma postura elegante de sempre, mas antes de seguir, virou-se para mim. Havia algo em seu olhar que parecia mais... leve, embora o cansaço ainda estivesse lá.

— Obrigada de novo, . Talvez você esteja certo sobre algumas coisas.

Eu estava prestes a responder quando me lembrei de algo importante.

— Ah, só para avisar... Remarquei a visita com a Rafa Kalimann para amanhã de manhã. Já organizei sua agenda para encaixá-la sem afetar outros compromissos.

Ela arqueou uma sobrancelha, surpresa, mas satisfeita.

— Bom trabalho. Espero que ela saiba que, se eu remarquei, foi porque eu quis, e não porque precisei.
— Ah, claro, Srta. . Vou garantir que a informação chegue até ela da forma correta. — Sorri de canto, deixando escapar um toque sutil de ironia.

me lançou um último olhar — difícil de decifrar, uma mistura de aprovação e desafio — antes de se virar e desaparecer no prédio.
Fiquei no carro por mais alguns segundos, observando o reflexo da cidade no vidro. não era uma mulher fácil de entender, mas, naquele momento, tive certeza de uma coisa: por trás da armadura que ela carregava, existia muito mais do que o mundo estava autorizado a ver.

💻👠

Depois de um dia exaustivo, tudo o que eu queria era algo doce para compensar o cansaço acumulado. A cafeteria do meu bairro parecia o destino perfeito — seus croissants eram os melhores da cidade e, de quebra, eu aproveitaria para levar um de chocolate para Clara, já que ela adorava. Assim que empurrei a porta de vidro, o aroma quente de café fresco e pão recém-assado me envolveu, trazendo um raro instante de conforto em meio à rotina caótica.
Mas o verdadeiro impacto veio quando meus olhos encontraram Amanda, sentada em uma mesa mais afastada, próxima à janela.
Ela estava imersa na leitura, o olhar fixo nas páginas amareladas de um livro que parecia ter sido lido e relido várias vezes. Seus dedos deslizavam pelas margens, traçando linhas invisíveis enquanto a outra mão repousava ao lado de uma xícara de chá já pela metade.
Era estranho como ela parecia perfeitamente encaixada naquele cenário, como se fosse parte da paisagem.
Amanda nunca passava despercebida. Seus olhos encontraram os meus em questão de segundos, e um sorriso familiar — carregado de um charme casual e uma pitada de malícia — se formou nos cantos da boca.

— Olha só quem resolveu aparecer — disse ela, fechando o livro com um movimento suave.

O sorriso dela era aquele tipo que fazia o ambiente parecer menos pesado, como se ela fosse uma pausa em meio ao caos.

— Amanda — respondi, me aproximando com um sorriso automático nos lábios.

Me inclinei levemente sobre a mesa e depositei um selinho rápido nos seus lábios. Era algo natural entre nós, um gesto sem peso ou significado profundo. Nós nunca fomos um casal. Nossa relação era confortável e descomplicada. Sem rótulos, sem expectativas. Apenas uma amizade com benefícios ocasionais.

— Posso me juntar a você? — perguntei, já puxando uma cadeira.
— Só se trouxer algo para mim. Exagerei no chá e agora estou precisando desesperadamente de algo doce. — Ela piscou, inclinando a cabeça para o balcão.
— Exigente como sempre — brinquei, rindo enquanto me afastava para fazer o pedido.

Peguei dois croissants — um para mim e o de Clara para viagem — e um muffin para Amanda, além de um café forte para tentar despertar meu cérebro cansado. Quando voltei para a mesa, ela me observava com aquele olhar curioso, o tipo de olhar que parecia ver mais do que você queria mostrar.

— Então, o que você está lendo? — perguntei, apontando para o livro que agora estava repousado ao lado da xícara.
— Algo que você provavelmente acharia entediante. — Ela pegou o livro, deslizando os dedos pela capa. — Romance histórico. Eu gosto da forma como as relações eram construídas antes. Cartas demoravam semanas para chegar, olhares carregavam significados profundos… Hoje, tudo é tão rápido.
— Rápido é pouco. — Tomei um gole do café, sentindo o amargor familiar se espalhar pela boca. — A gente vive num mundo onde até as pausas precisam ser produtivas.

Amanda me observou por um instante mais longo do que o necessário e, antes que qualquer palavra pudesse preencher o espaço entre nós, aconteceu.
Me inclinei levemente para frente e, sem hesitar, ela fez o mesmo.
O beijo foi natural, como um reflexo. Simples. Sem pressa. Um costume mais do que qualquer outra coisa. Nada nele exigia promessas ou comprometimentos, porque entre nós nunca houve nada além do agora.
Quando nos afastamos, Amanda sorriu contra meus lábios, seus olhos brilhando com diversão.

— Sempre achei que os muffins combinam melhor com beijos do que com café.
— Um argumento válido. — Ri, apertando de leve sua mão sobre a mesa.

A conversa continuou fluida, cheia de provocações e pequenos toques que não significavam mais do que deveriam. Amanda sempre teve essa capacidade de me fazer esquecer do caos, de ser um refúgio sem precisar de explicações.

— Você tem trabalhado demais — ela comentou, girando distraidamente a colher dentro da xícara. — Dá para ver no seu rosto.
— Isso é um jeito sutil de dizer que estou com olheiras? — provoquei, arqueando uma sobrancelha.
— Eu não disse isso. Mas… se a carapuça serviu. — Amanda riu, me lançando um olhar provocador.

Revirei os olhos, fingindo indignação.

— A culpa não é minha. Minha chefe tem um prazer sádico em me fazer correr contra o tempo.
— Você me falou dela uma vez, ela é implacável, né? — Ela apoiou o cotovelo na mesa, o queixo descansando na palma da mão enquanto me analisava.
— Isso é um eufemismo — suspirei, mordendo um pedaço do croissant. — Ela é o próprio pesadelo de salto alto.

Amanda soltou uma risada leve, mas mudando de assunto.

— Então me diga, o que você tem feito além de ser torturado no escritório? — Hesitei por um momento antes de soltar algo que não planejava compartilhar.
— Pensando em retomar meus desenhos. — Os olhos dela brilharam de interesse.
— Seus desenhos? Você nunca me mostrou nada.
— Porque nunca achei que fossem bons o suficiente. — Ela balançou a cabeça, descrente.
— Quero ver. Um dia desses, sem desculpas.
— Vou pensar no seu caso.

Amanda riu e, sem dizer nada, pegou minha mão sobre a mesa, seus dedos traçando círculos distraídos na minha pele. Um toque confortável, mas sem qualquer promessa.

— Então, o que acha de continuarmos essa conversa em um lugar mais… confortável? — sussurrou, inclinando-se levemente, a provocação evidente no tom.

Meu sorriso cresceu.

— Definitivamente uma ideia melhor do que falar sobre trabalho.

Pagamos a conta rapidamente e saímos juntos, nossos passos sincronizados, como se fôssemos parte de uma rotina que não precisava de explicações. A noite ainda estava começando, e por algumas horas, o caos da minha vida podia esperar.

💻👠

Já era tarde quando finalmente cheguei em casa. As luzes da sala estavam acesas, lançando um brilho suave que contrastava com o cansaço impregnado em mim. O aroma familiar de café misturado com lavanda ainda pairava no ar, uma daquelas pequenas marcas de Clara que tornavam aquele espaço mais do que apenas um apartamento — era um lar, um lugar onde o peso do dia parecia, pelo menos por alguns minutos, mais leve.
Ela estava afundada no sofá, cercada por um caos organizado de cadernos rabiscados, canetas espalhadas e o notebook equilibrado sobre o colo. Os fones de ouvido abafavam o mundo ao redor, mas não o suficiente para que ela não me notasse assim que fechei a porta atrás de mim. Clara tirou os fones, arqueando uma sobrancelha com uma expressão curiosa que, apesar do tom brincalhão, carregava um traço sutil de preocupação real.

— Até que enfim! Achei que tinha sido sequestrado pelo trabalho. Ou foi outra coisa? — provocou, com um sorriso leve.

Soltei um suspiro pesado, jogando a mochila no chão e me deixando cair no sofá ao lado dela, afundando no estofado como se aquilo pudesse, de alguma forma, aliviar o cansaço que parecia colado à minha pele.

— Sequestrado pela vida, talvez. Ou pelo destino — murmurei, passando as mãos pelo rosto, tentando afastar a sensação sufocante de um dia que parecia ter durado uma eternidade. — Foi um dia longo. E, para ser justo, também dei uma passadinha na cafeteria e acabei encontrando a Amanda.

O nome dela pareceu acender uma faísca de curiosidade em Clara. Ela fechou o notebook com um estalo suave, cruzou as pernas e me lançou um olhar que dizia "Agora você vai falar".

— A Amanda? Do nada? — perguntou, inclinando a cabeça, claramente interessada.

Dei uma risada breve, sem humor, esfregando a nuca como se o gesto pudesse aliviar a tensão.

— Pois é. Mas antes disso… minha chefe me arrastou para um encontro com a mãe dela.

O efeito foi imediato. Os olhos de Clara se arregalaram, e ela se endireitou no sofá, o rosto estampado com um misto de choque e empolgação.

— O quê?! Espera… você conheceu a mãe da ? — O tom dela subiu uma oitava, como se aquilo fosse o equivalente a uma fofoca de primeira linha.

Assenti, soltando um suspiro que parecia carregar o peso do encontro.

— Sim. E foi tão desconfortável quanto parece. A mulher passou metade do tempo analisando cada escolha da filha como se fosse uma juíza em um tribunal invisível.

Clara franziu o cenho, seu olhar agora misturado entre curiosidade e empatia.

— Nossa, que tenso. E a ? Conseguiu manter a pose de fortaleza impenetrável?
— Até conseguiu, mas dava pra ver que estava abalada. No final, acabei… — hesitei, percebendo o quão estranho soava até para mim — acabei interferindo para encerrar a conversa.

Ela piscou, incrédula, como se eu tivesse dito que parei um furacão com as próprias mãos.

— Você fez o quê?! !

Levantei as mãos em um gesto defensivo, rindo do tom escandalizado dela.

— Eu sei, eu sei! Parece loucura, mas… parecia que ela precisava de uma saída. E, olha, foi a primeira vez que vi um lado mais humano da .

Clara estreitou os olhos, inclinando-se para frente, intrigada.

— Humano como?

Fiquei em silêncio por um instante, revivendo a cena na minha cabeça. O jeito que manteve a compostura, mas não conseguiu esconder completamente a tensão nos ombros, o olhar mais carregado do que de costume.

— Foi sutil, mas estava lá. Quando ela me agradeceu… parecia genuíno. Não foi só por educação. Foi… real. Como se, por um segundo, ela não fosse a , CEO implacável, mas só… uma pessoa.

Clara me observou em silêncio, aquele olhar dela que sempre parecia enxergar além do óbvio, antes de sorrir de canto.

— Interessante… — murmurou, com um tom carregado de segundas intenções. — Mas e Amanda? Como ela entrou nessa história?

Soltei uma risada baixa, balançando a cabeça.

— Depois de um dia longo, decidi passar na cafeteria para pegar um croissant pra você. Só que acabei encontrando a Amanda. Conversamos, rimos… e, bom, esticamos a noite na casa dela, se é que me entende…

Clara revirou os olhos dramaticamente, jogando uma almofada na minha direção. Peguei o croissant da sacola e entreguei para ela, que o abriu imediatamente.

— Eu já entendi, ok? Não quero detalhes sórdidos! — Ri, pegando a almofada e jogando de volta.

Houve um breve silêncio antes de Clara me lançar um olhar de quem estava formulando uma pergunta séria.

— Sabe, … eu não entendo por que você não namora com ela logo? — Ela inclinou a cabeça, mordendo um pedaço do croissant. — Quer dizer, vocês não cansa desse negócio de casualidade? — Suspirei, apoiando a cabeça no encosto do sofá.
— Porque eu não a amo. — A resposta saiu com uma facilidade quase desconcertante, mas era a verdade.

Clara me analisou por um instante, mastigando devagar, como se digerisse minhas palavras junto com o croissant.

— Mas você gosta dela — afirmou, sem realmente perguntar.
— Sim, gosto. Amanda é incrível. Inteligente, divertida, e ela me entende. Mas não é… — Pausei, buscando a palavra certa. — Não é o fogo de uma paixão. Não é aquela coisa que consome, que faz você perder o ar.
— E ela nunca quis nada mais sério? — Pensei por um momento antes de dar de ombros.
— Se quis, nunca demonstrou. E, sinceramente? Acho que estamos na mesma página. O que temos sempre foi descomplicado, leve. Ela nunca cobrou nada, nunca esperou algo além do que era.

Clara me observou por mais um tempo antes de soltar um suspiro, balançando a cabeça.

— Bom… pelo menos vocês são honestos um com o outro.
— Sempre fomos. — Respondi, um sorriso cansado nos lábios.

Ela ficou em silêncio por um momento, depois pegou o controle remoto e acenou em direção à TV.

— Quer assistir alguma coisa? Já que você finalmente resolveu dar as caras.
— Só se for algo leve. Acho que não aguento mais nada sério hoje. — Respondi, pegando uma almofada e jogando contra ela, rindo do olhar indignado que recebi em troca.
— Você é insuportável. — Clara bufou, pegando outra almofada para revidar, mas antes que a guerra de travesseiros pudesse começar, meu celular vibrou na mesa de centro.

O som cortou o ar como uma faca, um lembrete de que o mundo lá fora não tinha pausa, mesmo quando eu precisava desesperadamente de uma. O nome de brilhou na tela, e um arrepio percorreu minha espinha. Clara lançou um olhar divertido para o telefone, a sobrancelha arqueada em uma expressão que misturava curiosidade e sarcasmo.

— Ih, lá vem bomba. Melhor atender logo antes que ela mande um helicóptero te buscar.

Suspirei, passando a mão pelo rosto, como se isso pudesse preparar meu cérebro para o que estava por vir. Deslizei o dedo pela tela e levei o telefone ao ouvido.

— Srta. ? — Atendi, tentando soar tranquilo, mesmo sabendo que, se ela estava ligando a essa hora, não era por algo simples.

A voz dela veio firme, direta, sem rodeios, do jeito que eu já estava acostumado:

, preciso que você ajuste minha agenda para amanhã. A reunião com a Rafa Kalimann precisa ser remarcada para às 10h00, em vez das 08h00. Ela vai até preferir, gosta de acordar mais tarde.

Franzi a testa, um incômodo imediato crescendo dentro de mim. Aquela reunião tinha sido difícil de agendar, e alterar novamente não seria fácil.

— Tem certeza? Essa reunião já foi reagendada uma vez… — Questionei, sabendo que estava pisando em território perigoso. O tom de voz dela já era um aviso por si só.

Do outro lado da linha, o suspiro impaciente foi quase audível. Era aquele tipo de suspiro que significava "não estou disposta a discutir isso".

— Tenho certeza, . Apenas remaneje e me envie a atualização assim que terminar.

O tom dela era irredutível, a paciência pendurada por um fio. Eu sabia que insistir seria inútil.

— Tudo bem. Vou resolver agora.
— Ótimo.

E, como de costume, a ligação foi encerrada antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa.
O telefone descansava no sofá, a tela escura refletindo meu próprio cansaço. O peso da ligação ainda pairava no ar, misturado ao silêncio descontraído da sala. Clara me observava com um olhar divertido, abraçando a almofada que eu havia jogado nela minutos antes.

— Você realmente trabalha para uma máquina, não é? — provocou, inclinando a cabeça com um sorriso malicioso.

Dei uma risada curta, sem muito humor, afundando no sofá.

— Uma máquina bem programada para controlar tudo e todos.
— Incluindo você. — Ela piscou, rindo da própria piada.

Balancei a cabeça, rindo baixinho, mas a verdade era que aquilo não estava tão longe da realidade. parecia ter um talento especial para fazer o mundo girar ao seu comando. E eu? Bem, eu era só mais uma peça bem encaixada nesse tabuleiro.


Continua...



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Nota da autora: Eita que a Alice mostrou uma face nova… Será que o Arthur está finalmente conseguindo quebrar as barreiras dela?
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Nota da scripter: Trabalhar pra Dias é realmente um desafio, hein? Coitado do Arthur hahahaha qualquer vacilo.... fica esperto com esses olhares aí, ela tá de olho em você '-'








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