“Você não tem coragem o suficiente para fazer o que deve ser feito até que não te sobrem mais opções. Quando a vida parece odiar a sua existência, você deixa a coragem ser maior do que tudo e bate de frente com ela”
O país do futebol recebe os times em casa para a Copa do Mundo, gente de toda a parte do mundo se encontra no Brasil para os jogos que começaram no último fim de semana e seguirão até o próximo mês. Algumas ruas do Rio de Janeiro estão pintadas, como em um condomínio na Barra da Tijuca. São artes bonitas, feitas pelos próprios moradores que parecem ter entrado em um consenso para fazer isso, além de terem colocado bandeirinhas verdes, amarelas e azuis cobrindo as ruas. Depois de dezessete anos vivendo no orfanato Lar Santa Maria, eu estava prestes a fazer dezoito anos e finalmente sair de lá para viver a minha própria vida quando os Queiroz, por algum motivo, me adotaram. Eu me pergunto por que um casal de meia idade adotaria uma garota de praticamente dezoito anos com tantas crianças precisando de um lar?
Meu plano era simples, eu sairia em dois meses quando completasse a maioridade e ficaria por algum tempo em um abrigo na Lapa até encontrar um emprego e poder bancar um aluguel. Viveria minha vida sozinha, mas seria a minha própria vida, algo que eu escolhesse. Cresci no orfanato, não quis ir para lá, a mulher que me deu a luz foi a que me colocou naquele lugar. Agora fui adotada, mais uma vez não fui eu que escolhi o meu destino, não fui eu a pessoa a ter as rédeas do meu futuro. Em dezessete anos sempre consegui me esquivar dos que tentavam me adotar,
de algum jeito eu sempre consegui me livrar dessa vida, mas os Queiroz apareceram, bem quando minha liberdade cantava em meus ouvidos.
— , bem vinda ao seu novo e definitivo lar! — Laura me traz de volta a realidade quando abre um sorriso caloroso assim que saí do carro, posso sentir seus músculos tensos em uma tentativa de vir me abraçar, mas eu permaneço com as mãos dentro dos bolsos da calça jeans, apenas sorrindo de forma simpática. — Vem, Daniel chegará em poucas horas, o bastante pra eu te mostrar a casa e você se aconchegar.
Fecho a porta de trás do carro, olhando em volta na rua bem movimentada por pessoas eufóricas pelo jogo que começará em breve. A casa do casal Queiroz é bem bonita, faz o estilo de casa rica da novela das nove, por dentro é ainda mais espaçosa e muito bem decorada com os poucos móveis que tem, dando prioridade ao espaço que deixa tudo com um ar mais clean.
— É uma bela casa. — Comento enquanto olho em volta, puxando minha única mala comigo. Quando paramos na sala, Laura se vira para mim com seu sorriso de sempre e eu solto um suspiro. — Estou cansada. Tudo bem se você me mostrar tudo depois?
— Claro, claro! Eu vou te mostrar o seu quarto, você pode tomar um banho e arrumar suas coisas quando quiser.
Sigo a mulher até o segundo andar da casa, estranhando cada ponto que apresente o menor sinal de riqueza. Entramos na terceira porta à direita no corredor, o quarto é metade do tamanho do meu antigo quarto no orfanato, mas contando que eu o dividia com mais sete garotas, este é até que grande demais para mim.
— Eu vou dormir com mais alguém? — Franzo o cenho ao questionar, reparando uma cama de casal no meio do cômodo.
— O quê? Não, por quê acha isso? — Laura ri divertida caminhando até a janela, ela abre as cortinas e parece reparar no meu olhar para a cama. — Ah, você diz por causa da cama? Bem, nós queríamos que você se sentisse confortável. Você dormia em uma cama de solteiro, tenho certeza de que vai gostar dessa.
***
Já é noite, eu tentei dormir depois do banho mas a gritaria em vibração pelo jogo entre Alemanha e Portugal conseguiu ultrapassar a parede do meu novo quarto. Depois de rolar na cama uma dezena de vezes, resolvo sair dela e do quarto, disposta a explorar a casa que agora também é minha. Antes de sair, troco o pijama por um short cinza de tecido macio e uma camisa branca de manga, algo menos íntimo e mais comportado. Exploro o corredor e as portas que tem por ali, tudo o que encontro é um quarto de hóspedes, um escritório e um quarto vazio. A última porta me faz lembrar que, caso seja o quarto do casal, eu posso abrir e encontrar o que não devo e nem
quero, isso basta para que eu dê um fim a curiosidade e desça as escadas até encontrar Laura e Daniel na sala.
Os dois estão sentados no sofá, ela assiste tv enquanto ele mexe no celular bastante distraído. Preciso pigarrear para que notem a minha presença, já parada ao lado de um dos sofás. Laura é a primeira que me vê, mais uma vez seu sorriso é notório e eu, por algum motivo, não me sinto confortável com alguém sorrindo para mim o tempo inteiro.
— E aí, conseguiu dormir pelo menos um pouco?! Os vizinhos não ajudaram muito.
— Não mesmo — murmurou indo me sentar no espaço vazio ao lado da mulher.
Sento em cima de uma das pernas e olho para Daniel, que está com os olhos atentos em mim. É estranho, mas sinto um calafrio correr pelo meu corpo quando isso acontece e eu me obrigou a voltar a olhar para Laura.
— Daniel chegou a pouco tempo, estava ansioso para te ver. Não é, amor?
— Sim, eu estava. Como você está, ? É tão bom ter você finalmente em casa com a gente!
O homem de meia idade se levanta do sofá e vem até a mim, me fazendo levantar assim como ele por educação. Quando seus braços estão ao redor do meu tronco em um abraço caloroso que me pegou de surpresa, eu fico um tanto estática tentando forçar o meu cérebro a se conectar com o corpo e me fazer retribuir o abraço. Eu não sou carinhosa e nem calorosa, muito menos simpática. Me esforço apenas para ser educada, e abraços não são algo que eu goste.
— Estou bem, Daniel! Obrigada por isso, eu espero me acostumar a essa vida nova o quanto antes.
— É tão bom ver vocês juntos. — Laura diz e sua voz vacila, alegando que ela está emocionada. Rapidamente me desvencilhei do abraço que parece me sufocar e volto a me sentar. — Quando eu e Daniel fomos ao Lar Santa Maria, queríamos adotar uma menina já crescida, talvez uns doze ou treze anos. Mas quando te vimos, nos apaixonamos, e foi ele que mais me encorajou a escolher você.
LOS ANGELES, EUA. ATUALMENTE. Sentada na recepção vazia, tudo o que posso ouvir é Desperado de Rihanna tocando na caixinha de música. Já passava das 17h da tarde e o estúdio deveria fechar em uma hora, se não fosse por um cliente aparecer sem hora marcada. Decidida a não ficar mais parada ali, trato de desligar não só a caixinha de som, mas também as luzes azuis que deixam o lugar aconchegante, deixando somente a luz principal acesa, e sigo para dentro da cabine onde o trabalho está sendo feito.
No momento de concentração nada é ouvido a não ser o barulho das agulhas perfurando a pele sei lá quantas vezes por segundo. Julie insiste que eu deveria aprender a tatuar para fazer algo da vida, ter um emprego quer que goste. Mas todos esses anos vendo ela fazer isso, dia após dia, cada vez mais tenho a certeza de que prefiro ser quem recebe o rabisco, e não quem faz.
Julie e eu somos amigas há três anos, desde que eu cheguei na grande Los Angeles. Uma das minhas primeiras noites nos EUA foi marcada por um porre daqueles que é capaz de nos levar a um estúdio de tatuagem em plena madrugada e ter a péssima ideia de tatuar uma cobra na mão. Por sorte, a dona do estúdio foi um anjo em não ceder ao desejo de uma cliente bêbada. Até hoje me pergunto porque o estúdio estava aberto durante a madrugada.
— , me passa o papel, por favor.
A ruiva me pede enquanto tem sua atenção voltada para as costas de um loiro de quase dois metros de altura que agora carrega uma cruz que vai desde o topo até a base daquela região. Religioso ou maluco? Supersticioso, talvez. Salto da mesa onde estou sentada para buscar o rolo de papel descartável em cima da prateleira e entrego a ela, que retira alguns papéis para limpar o excesso de espuma do desenho agora extremamente brilhante e incrivelmente bem feito. Um sorriso se abre em meus lábios e eu cruzo os braços diante do peito enquanto observo um pouco distante.
— Ficou muito bom. Não teria como ser diferente. — Falo e Julie me lança um sorriso ao mesmo tempo em que empurra o corpo para trás, se distanciando com a banqueta onde está sentada para ver melhor sua obra de arte.
— Ficou, não é?! Eu também achei. — Ela retira a lente de aumento dos olhos e se levanta.
No minuto seguinte o loiro está admirando a nova tatuagem através do espelho, bastante contente com o rabisco. O som do telefone tocando na recepção me desperta e eu corro para conseguir atende-lo. Depois que fui rejeitada até no Mc Donald's, Julie me empregou como sua recepcionista, a princípio era apenas alguns dias na semana, agora são todos os dias, exceto nos fins de semana.
Depois de fechar o estúdio, Julie e eu seguimos a pé pelas ruas de Los Angeles até o estacionamento onde o carro dela está estacionado. O clima está agradável, apesar de um vento fraco e gelado nos lembrar que em breve o outono irá embora e o inverno chegará com tudo. Assim que entro no carro, tiro o celular do bolso para checar as novas notificações e posso ver três chamadas perdidas de Simon, bem como cinco mensagens dele questionando a demora para responder. Solto um suspiro e devolvo o celular para o bolso, já estou indo para casa, não preciso responder agora.
— Animada para a festa da Zoe? — Julie pergunta depois de alguns minutos enquanto dirige pelas ruas iluminadas.
Zoe é uma das outras amigas de Julie, que automaticamente se tornou minha amiga também, já que Julie e eu nos tornamos peças inseparáveis desde que nos conhecemos. Vivo com ela em sua casa e nossa rotina é resumida em trabalho de dia, sociais à noite e às vezes uma ressacada ferrada no dia seguinte. Depois de Simon, precisei me distanciar um pouco, mas minha amiga sempre faz o ótimo trabalho de me manter por perto.
— Estou cansada, então... Comentei com Simon, mas não acho que ele vai querer ir. — Dou de ombros ao dizer enquanto deslizo os dedos pelo símbolo de radiação tatuado na parte anterior do meu antebraço direito.
— Credo, , você tá parecendo uma velha. E foda-se o Simon, você sabe o que eu penso dele.
Uma risada escapou dos meus lábios, virei o rosto para olhar minha amiga e faço uma careta. Ela está certa, eu estou mesmo parecendo uma velha de vida pacata e rotineira, e Julie nunca gostou de Simon, assim como nenhum dos meus outros amigos. Não demora para que cheguemos em casa, já são 19h e temos pouco menos de duas horas para ir até o mercado, comprar as bebidas e comida e ainda voltar para nos arrumarmos.
— Acho que Liam abriu a boca pra Zoe. Quer dizer, ele é péssimo em segredos.
Comento enquanto Julie e eu entramos em casa, rapidamente tiro o casaco fino que cobre o meu corpo, jogo em cima do sofá e sigo para a cozinha atrás de alguma coisa para beber.
— Liam é o pior namorado que se pode ter. — Julie comenta com divertimento, já que é impossível olhar para o casal e não ver como ele cuida tão bem de Zoe. — Mas
eu fiz ele calar a boca. Digamos que tem muita coisa em jogo pra ele manter a festa surpresa.
Meu olhar se estreita para a ruiva enquanto tomo um gole da cerveja gelada, o sorriso travesso em seus lábios me faz pensar que Julie aprontou o inferno com Liam, seu irmão mais velho.
— Eu juro que quero ficar fora disso. — Falo me meio a um riso, passo pela garota e retiro a carteira presa no seu bolso de trás da calça jeans. Dou um último gole na cerveja antes de deixar a lata vazia em cima da bancada. — Eu vou no mercado e você fica arrumando as coisas.
Dito isso, saio pela porta principal da casa, descendo as escadinhas com certa pressa. O mercado mais próximo fica a três ruas, o que me faz optar por ir a pé. Quando viro a esquina, uma viatura da polícia faz o caminho contrário e para cerca de um metro de distância de mim, me fazendo arregalar os olhos e dar um salto para frente.
— Tá maluco, porra?! — Esbravejo com raiva, preciso olhar através do vidro para ver o policial que dirige e estreito os olhos, dando a volta até me abaixar na janela e apoiar os braços ali. Meu olhar encontra o dele e eu balanço a cabeça em negação. — Eu deveria te denunciar por quase me atropelar.
— É? Vai ligar para a polícia? — O sorriso ladino brota nos lábios do moreno, me arrancando um arrepio e eu sorrio igualmente. — Eu te liguei e mandei mensagem, onde você estava?
Simon ameaça abrir a porta, o que me faz dar um passo para atrás para dar espaço a ele. Logo o moreno está com suas mãos envoltas no meu quadril e meus braços estão acomodados em seus ombros.
— Onde mais eu poderia estar além do estúdio com a Julie? — Simon revira os olhos, seus dedos se prendem mais a minha pele.
— Na próxima vez, atenda a minha ligação na hora em que eu ligar, . Ok?
O moreno desliza o olhar pelo meu corpo, estudando as roupas que eu visto, reviro os olhos igualmente a ele e apenas assinto na tentativa de espantar o assunto e junto com ele o namorado possessivo que Simon consegue ser.
— Estou indo no mercado comprar bebidas pra festa da Zoe, vem comigo? — Pergunto enquanto acaricio seus cabelos da nuca de forma distraída.
— , você ouviu o que eu falei?! — Ouvi, Simon!
— Então responde, porra. Quando eu te ligar, quero que você atenda. — Ele aumenta o tom de voz na tentativa de impor seriedade ao que fala, reviro os olhos pela segunda vez e me afasto até nossos corpos não estarem mais juntos.
— Tudo bem, vou fazer isso.
***
Às 20:30h a casa já estava cheia. Seria apenas uma social com os amigos mais próximos, mas um sempre chama outro e no fim de tudo me preocupo se tem bebida e comida o bastante para todo mundo. Depois de tomar um banho de chuveiro que durou uns bons minutos, vou para o closet e visto uma saia de couro preta, regata branca lisa e um par de botas de cano curto. Penteio meus cabelos, deixo os fios longos caírem livres por minhas costas e saio do quarto para encontrar meus amigos no andar de baixo, todos na sala. Antes de chegar até eles, tratou de pegar um copo com uma bebida transparente, já tomando um gole longo dela.
Julie está sentada no colo de Mariah, Liam jogado no tapete verificando o celular a cada minuto provavelmente para ter notícias de Zoe, e Zack sentado na outra ponta do sofá que divide com as meninas.
— E então, onde está a nossa garota?
Pergunto animada, jogando meu corpo no sofá ao lado de Zack, me escoro em seu ombro e não demora para que ele me abrace, deixando um beijo no topo da minha cabeça. Zack foi um dos primeiros amigos que fiz em Los Angeles, o conheci também através de Julie e, assim como a ruiva, ele também é tatuador, mas deixou a carreira de lado para tentar seguir na empresa do pai. Alguns de nós tem algo chamado responsabilidade. Não que eu seja contra.
— Liam disse que ela saiu de casa agora e está vindo pra cá. — Zack responde ao mesmo tempo em que me oferece o baseado que está em seus dedos.
— Eu falei que Julie está passando mal e que preciso da ajuda dela. — Liam diz um tanto nervoso, o rapaz apoiou seu braço para trás, deixando em cima do espaço vago no sofá.
— Tadinha da minha amiga, ela vai me matar.
Julie ri enquanto bebe um gole do que está em seu copo vermelho e eu faço o mesmo no meu antes de aceitar o baseado de Zack e dar uma tragada leve. No instante em que solto a fumaça pelos lábios, a campainha toca e todos nós pulamos do sofá quase que em um movimento sincronizado.
— Vai, você abre a porta! — Sussurrei para Liam, apontando para a porta.
Liam espera apenas o tempo para que todos nós possamos sair do caminho da porta, impossibilitando que Zoe nos veja quando ele a abrir. Logo que a porta se abre, uma Zoe extremamente nervosa e preocupada atravessa o caminho e para no meio da sala assim que nos vê.
— Feliz aniversário! — O coro, nem um pouco sincronizado, ecoa pelos quatro cantos da sala.
— Ai, meu Deus, eu quero matar todos vocês!
A voz de Zoe está embargada e ela coloca as mãos na frente do rosto, tentando se recuperar do susto. Liam rapidamente envolve a namorada nos braços, dando beijos em seu rosto e eu sou a primeira a dar um passo à frente para abraçá-la.
— Sai, deixa um pouquinho dela pra mim também.
Rio divertida ao enxotar Liam e abraçou Zoe com certa força, balançando nossos corpos de um lado para o outro.
— Feliz aniversário, Zoetec! — A voz de Julie se faz ouvir.
A ruiva é a segunda a vir e abraçar a amiga, logo é Mariah quem está desejando felicidades a aniversariante e por último Zack. Enquanto todos me felicitam, me jogo no sofá agora vazio e termino com a minha bebida já quase quente. Meu celular vibra preso na cintura enquanto dou uma tragada no baseado que Zack me passou, rapidamente sou levada para a lembrança de Simon exigindo que eu o atenda quando ele ligar. Bufo com a situação, puxo o celular e posso ver o nome do meu namorado estampado no ecrã. Atendo no terceiro toque.
— Sim, senhor. — Murmuro levando o baseado aos lábios outra vez, soltando o ar pelo nariz em seguida. Na minha frente posso ver a movimentação do pessoal, alguém finalmente coloca a música para tocar e eu xingo baixo. — Simon?! Não estou te ouvindo.
— ?!
, consegue me ouvir agora?
Levanto do sofá e saio em direção ao quintal pela porta dos fundos para conseguir distância da música alta. Me deparo com um casal se pegando bem no meu jardim e isso basta para que eu me aproxime, abrindo um dos braços.
— Ah, qual é?! Vazem daqui, agora! Vão, vão, saiam do meu jardim! Procurem uma cama, porra. — Jogo o cigarro no chão, piso com o salto em cima e abraço o meu corpo com o braço livre. — Oi, agora eu consigo te ouvir.
— Vem pra minha casa, acabei de chegar e quero você aqui. — A voz de Simon ecoa do outro lado.
— Simon, é o aniversário da Zoe. Não posso deixar meus amigos aqui.
— Qual é, , é só mais um bando de gente bêbada que nem vai lembrar se você ficou ou não aí, e eu sou o seu namorado. Estou te esperando, não demora.
Depois de falar, Simon desliga a ligação e eu preciso olhar para o celular para constatar que ele realmente fez isso. Solto um grunhido, olho para dentro da casa através da janela e um suspiro escapa dos meus pulmões.
BRASIL, RIO DE JANEIRO. TRÊS ANOS ATRÁS.
Não consigo diferenciar as minhas lágrimas da sujeira que ele me fez, porque tudo transborda, tudo molha minhas vestes e a dor entre minhas pernas consegue anestesiar meus músculos inferiores. Maldito foi o momento em que Laura saiu por aquela porta, porque eu sabia que não estaria sozinha, sabia que ele viria. Ele sempre vem.
— Engole o choro, porra! Você sabe que a culpa foi sua! — A voz de Daniel ecoa pelas paredes do quarto.
Quanto mais eu ouço sua voz, mais eu soluço em choro e tento me enfiar embaixo dos lençóis da minha cama como se pudesse me esconder ou simplesmente sumir. Daniel, o homem que eu deveria chamar de pai, encostou em mim pela primeira vez quando eu tinha pouco mais de dezenove anos, eu tinha me tornado parte da família a cerca de um ano. Não é como se isso não tivesse acontecido antes, mas desta vez a minha última gota de fraqueza foi explorada.
— Você me machucou... — Minha voz soa entrecortada enquanto tento de uma forma estúpida dizer a ele o que fez comigo.
— Não, eu não machuquei. Você está inventando coisas, . Vamos levantar dessa cama e tomar um banho.
Daniel está parado próximo a porta do quarto, ajeitando a camisa social branca para dentro da calça marrom, ele parece desesperado. Seu olhar para mim é de puro desespero e eu chego a acreditar em suas palavras. A culpa foi minha, não foi? Sempre é. Sempre é a minha roupa que chama a atenção dele, ou a forma como eu como um iogurte, até mesmo o jeito como eu ando descabelada pela casa depois de acordar. Eu o provoco, chamo a sua atenção e carrego essa culpa. Com os olhos vidrados em mim, Daniel se aproxima com rapidez, o que me faz virar o rosto e me encolher em puro reflexo. Logo sua mão está no meu queixo, me obrigando a olhá-lo.
— Não pense em abrir a boca para dizer alguma besteira à Laura, entendeu bem? Foi tudo culpa sua, você me seduziu e eu vou dizer isso a ela caso você abra a boca. Ela não vai te querer mais aqui e você vai pra rua. É isso que você quer, , hm? — Seus olhos queimam sobre os meus e eu não posso ver nada além de escuridão neles. É como olhar o diabo, cara a cara. — Vai tomar um banho. Eu vou sair, e quando voltar quero você limpa.
Daniel solta o meu rosto e sai pela porta do meu quarto, batendo-a. Minha primeira reação é jogar o travesseiro com toda a minha força contra ela e gritar no segundo seguinte.
— Eu odeio você e eu odeio essa merda de vida!
LOS ANGELES, EUA. ATUALMENTE. Preciso pegar um táxi até a casa de Simon, é quinta-feira à noite e as ruas de Los Angeles estão agitadas, como sempre são. Quanto mais tarde fica, mais vejo gente como eu nas ruas, gente que só quer curtir, sem medo, sem preocupações. O motorista para em um sinal vermelho bem no centro e ao olhar pela janela posso observar um casal comendo cachorro quente em uma barraquinha na esquina, o cheiro consegue chegar até a mim e eu suspiro, sentindo minha barriga roncar. A paz que reina entre os dois faz parecer que estão em uma bolha, intocáveis, inseparáveis. Quando sinto o balanço do carro outra vez, desvio os olhos e aperto mais os braços contra o meu tronco, desta vez com a atenção na avenida diante de mim.
Depois de entregar uma nota de cinquenta dólares ao motorista, saio do carro e caminho pela calçada até estar em frente à porta da casa do meu namorado. Antes que eu consiga dar o primeiro toque na campainha, a figura de Simon aparece diante de mim e eu ergo as sobrancelhas.
— Hm, vidente ou psicopata? — solto uma risada baixa ao perguntar. — Ansioso.
O moreno me corrige com um sorriso nos lábios ao mesmo tempo em que um dos seus braços me envolve na cintura e leva o meu corpo para dentro da casa. Simon veste um conjunto de calça e casaco de moletom branco que combina perfeitamente com a sua pele morena, ele me beija nos lábios e eu o abraço nos ombros para corresponder.
— Você me tirou da festa de aniversário da minha amiga, espero que valha a pena, mocinho. — Nossos lábios ainda estão colados um no outro quando falo com um meio sorriso. As mãos de Simon apertam suavemente os meus quadris antes que ele se afaste.
— Pensei que estar comigo fosse o bastante. — olho para ele com divertimento, esperando que encontrar um Simon sorridente como quem diz que está brincando, mas não é o que eu encontro. — Vai lá tomar um banho, você está fedendo a maconha e cerveja. Eu estou fazendo algo pra gente comer. — um desanimo me bate ao imaginar o que ele está cozinhando, já que o meu namorado segue uma dieta muito limitada onde alimentos com gordura e açúcar são extremamente proibidos.
Fico parada nos segundos seguintes, olhando agora não mais para Simon e sim para as suas costas que logo somem quando ele adentra a cozinha. Me pego pensando na ideia de dar meia volta e estar com os meus amigos outra vez, me divertindo e fazendo qualquer merda que eu queira, sem julgamentos. Sem comentários como “você está fedendo a maconha e cerveja”. No entanto, sei que também preciso estar aqui, preciso dar atenção ao meu namorado. Quer dizer, Simon e eu nos vemos poucas vezes já que ele tem uma escala de trabalho puxada e quase sempre está na ativa. É isso o que os namorados fazem quando estão apaixonados, não é? Eles sacrificam suas vidas para o bem da relação. Não é?
Solto um suspiro forte, batendo com as mãos nas minhas próprias coxas como se me desse por vencida e arrasto meu corpo até o banheiro no fim do corredor. Depois de fechar a porta, começo a tirar minhas botas e chuto elas para o canto enquanto termino de me despir, assim que entro no box e abro o chuveiro, a água quente cai sobre meu corpo e eu me sinto um pouco zonza. Fecho os meus olhos por um momento, recosto no azulejo frio atrás de mim e deixo a água continuar a me molhar por inteira. Junto com a sensação de que as paredes do banheiro estão girando em torno de mim, um aperto no peito me causa falta de ar e eu preciso separar os lábios para respirar fundo e encher meus pulmões. Eu conheço essa sensação, essa maldita sensação.
Recosto a cabeça para atrás e abro os olhos, encarando o teto sobre a minha cabeça, ainda respiro pela boca, agora um pouco menos tonta, mas buscando por ar o bastante para que eu consigo terminar o banho. A abstinência corrói o corpo quanto a
droga, essa é a maior verdade, uma realidade que ninguém está ligando para enxergar. Somente quando ouço um barulho vindo da cozinha é que desperto e percebo que a sensação já aliviou, me permitindo terminar o banho, desta vez com certa pressa. Ao sair do box, enrolo meu corpo na toalha branca e pego a escova, penteando meus cabelos para atrás. Observando meu reflexo no espelho por alguns segundos posso ver as olheiras fundas e os olhos brancos, desidratados.
— , a comida vai esfriar! — A voz de Simon me tira do transe outra vez.
— Já estou indo!
Devolvo a escova para a gaveta, um pacote dourado me chama a atenção e eu franzo o cenho quando pego o a caixa de perfume importado. É um perfume feminino, amadeirado, ainda lacrado. Depois de vestir uma camisa branca larga de Simon e a minha calcinha, pego a caixa e saio a caminho da sala, encontrando meu namorado sentado no sofá mexendo no celular, quando me ver, Simon bloqueia e tela e larga o aparelho no sofá. Ele observa o que seguro nos dedos e ergue uma sobrancelha.
— Você é mesmo muito curiosa. — ele ri e eu me aproximo, sentando no mesmo sofá.
— Bem, você não costuma usar perfumes femininos, então... Sim, sou e estou curiosa. — falo erguendo a caixa ainda lacrada.
— Eu comprei pra você. — ele diz dando de ombros, já mudando sua atenção para a porção de ovos de codorna cozidos em uma tigela dentre as outras que contém petiscos nada saborosos.
— E por que não me deu? — Questiono colocando a caixa em cima da mesa, ainda o observando com atenção. Como eu havia imaginado, a paciência com limite extremamente curto de Simon chega ao fim e ele se vira para mim com o semblante sério.
— Para com essa merda de ciúmes, . Já disse que comprei pra você, não disse?
O moreno vira o corpo de volta para a mesa, alternando sua atenção entre a comida e o jogo de hóquei que passa na televisão. Nesse momento, tudo o que eu posso e quero fazer é me afundar no sofá com uma tigela de azeitonas temperadas em mãos e assistir o jogo de hóquei. Mas toda vez que meu olhar cai sobre o perfume, eu sinto minha ansiedade apertar no peito.
***
Ainda é sexta-feira, por isso meu relógio despertou às 8h em ponto, preciso estar no estúdio em menos de um hora para abrir o local, mas a cama de Simon tem um conforto daqueles que nos faz querer dormir o dia inteiro. Preciso apertar o botão do celular para desligar o alarme, espreguiço o corpo na cama de forma lenta e abro os olhos, não vendo nada ao meu lado a não ser o lençol bagunçado. Não que eu esteja chateada por Simon ter ido trabalhar sem se despedir de mim, ele não costuma fazer isso, mas acho que eu esperava que pudéssemos ao menos tomar café da manhã juntos.
— Bom dia, . Dormiu bem? Então, eu estou indo trabalhar, mas você pode ficar à vontade e dormir o quanto quiser.
Resmungo sozinha enquanto ando pelo quarto até entrar no banheiro para o banho matinal. Depois de limpa, visto a mesma roupa da noite anterior, trocando a minha blusa por uma camisa do AC/DC de Simon, prendo meus cabelos em um rabo de cavalo no alto da cabeça e me sinto pronta para devorar tudo o que conseguir na cozinha. Minha fome é tanta que juro poder almoçar de uma vez, se não fosse pela comida sem gosto que há na dispensa. Por fim, para o café da manhã preparo um omelete de queijo com tomate e uma vitamina de banana, além de terminar de comer os ovos de codorna que sobraram da noite anterior. Eu sei que poderia engodar se não fosse pela droga, mas também é pela falta dela que eu sinto tanta fome.
Antes de sair da casa de Simon passo na sala para pegar minha bolsa em cima da poltrona e meus olhos pairam no perfume ainda lacrado no mesmo lugar que o deixei na noite passada. A voz do meu namorado ecoa na minha mente, posso ouvi-lo dizer que comprou aquilo para mim e eu reviro os olhos antes de pegar o perfume e enfiar dentro da bolsa. O trajeto até o estúdio é relativamente curto, mas a demora se deve ao trânsito especialmente congestionado a essa hora da manhã. Após 30 minutos dentro do taxi chego ao estúdio para encontra-lo já aberto, posso ver Julie sentada na recepção, ela parece desenhar algo em um caderno e mal nota minha presença, ou finge não notar.
— Desculpa o atraso, o trânsito da casa do Simon pra cá é péssimo e eu me esqueci disso. — comento colocando minha bolsa dentro do armário na copa e aproveito para me servir com uma xícara de café.
— Não me importo. — ela diz com desdém com a atenção toda voltada para o caderno. — Ganhei 100 pratas.
Franzo o cenho o que ela diz, dou um gole longo no café quente e paro do outro lado do balcão, apoiando os braços ali.
— Como assim? Ei! Que bicho te mordeu, ein?! — provoco Julie esticando o braço para pegar o lápis de sua mão, fazendo a ruiva me olhar pela primeira vez. Seu semblante não é o dos melhores, o que faz o sorriso do meu rosto desaparecer.
— Depois que você saiu na maior cara dura, nós apostamos para onde você teria ido. Eu e Liam apostamos que você tinha ido para a casa do Simon. Me devolve isso aqui! — Julie se estica para tomar de volta o lápis e voltar a desenhar, mas apenas mais um traço 0é feito antes que ela pare e volte a me olhar. — Você foi uma idiota, sabia?! Não, você sabia sim. A pergunta é, por que você foi idiota?!
— De que porra você está falando? Eu estava na casa do meu namorado, não é como se eu estivesse com um estranho! E eu esperei a Zoe chegar. — falo em defesa e Julie dá uma risada que arrepia todo o meu corpo, me fazendo cerrar os dentes e marcar a mandíbula.
— Você sempre enche a boca para dizer “meu namorado” como se aquele cara fosse digno disso. A gente planejou a festa da Zoe desde o mês passado, e você saiu cinco minutos depois que ela chegou! E o pior, saiu calada, com o rabo entre as pernas como se fosse um cachorro, como se não fossemos seus amigos! — ela se levanta da cadeira, deixa o caderno em cima do balcão e seu olhar parece penetrar o meu. — Talvez seu namorado seja mais importante para você do que os seus amigos. Por que você não aceita o convite dele e vai morar com ele de uma vez, hm? — assim que Julie diz, abro a boca completamente perplexa com a sugestão idiota que ela dá.
— Quer saber? Você está certa! Talvez eu deva mesmo ir morar com o Simon!
Esbravejo, já apoiando as mãos em cima do balcão, totalmente em posição alerta quando o sino da porta toca, indicando que o primeiro cliente do dia chegou, bufo e viro as costas, levando minha xicara junto comigo. Dentro da copa, jogo toda a bebida quente no ralo da pia e vasculho o armário atrás da minha bolsa, meus dedos são ágeis em encontrar o cigarro e acende-lo, logo meus lábios o pressionam e eu trago com força, ansiando pela sensação de entorpecimento que não demora a vir.
Não sei se falo sério sobre aceitar o convite que Simon me fez em ir morar com ele, eu disse que pensaria sobre e daria uma resposta definitiva, mas eu gosto de onde moro, gosto de viver com Julie. Além do mais, sei que Simon usaria o fato de eu morar com ele para me privar ainda mais de fazer as coisas que eu gosto de fazer. Apesar de gostar dele, tenho noção do quanto meu namorado pode ser um idiota quando quer. Também tem Zoe, Liam e Zack, meus amigos, Simon me privaria de estar com eles. Bem, ele já faz isso. Mas a verdade é que faz pouco tempo desde que comecei a mandar em mim e eu não quero e nem vou deixar que isso mude. A única pessoa que pode decidir o meu futuro sou eu mesma.
A manhã e tarde passam de forma lenta, evitar Julie e ser evitada é algo trabalhoso. Sabemos que isso não vai durar, que mais cedo ou mais tarde nos esbarraremos em casa e teremos que falar uma com a outra, mas, por hora, nos evitar parece ser a coisa certa a ser feita. Estou sentada na cadeira atrás do balcão mascando um chiclete enquanto deslizo a tela do celular avaliando dezenas de desenhos, todos candidatos a serem a minha próxima tatuagem. Tenho um total de vinte rabiscos, todos espalhados por meus braços e pernas, além de uma frase na costela abaixo do seio
esquerdo e duas flores pequenas que se encontram o ponto abaixo dos meus seios, a minha preferida.
— Oi, fujona. — uma voz feminina me tira da concentração e eu levanto a cabeça para ver Zoe diante de mim.
— Oi, Zoe. — bloqueio a tela do celular e endireito o meu corpo, consertando minha postura. Analiso a loira por alguns segundos em busca de irritação em seu rosto. — Você também quer me matar? Me desculpa por ter saí...
— Desencana, . Está tudo bem. — ela pisca com um olho para mim, me fazendo acreditar no que fala. — Cadê Julie? Estava passando aqui perto e vim ver vocês.
— Lá dentro com uma cliente. — respondo apontando com o polegar e volto a debruçar sobre a bancada. — Acho melhor você não entrar, é tatuagem íntima.
Zoe abre a boca para responder, mas o toque que vem do seu bolso traseiro faz ela parar para pegar o celular. A loira dá as costas para atender e eu me pego bocejando em puro tédio, ao olhar para o relógio de parede em cima da porta de entrada, contesto que ainda faltam quarenta e cinco minutos para fecharmos. Enquanto Zoe fala ao telefone, volto a olhar o meu e abro a conversa com Simon, a última mensagem recebida por ele foi a de ontem à tarde questionando o motivo pelo qual eu não atendia suas ligações. Não me considero uma pessoa carente, acho que sou o contrário disso, mas vezes como essa eu desejo ser um pouco mais notada por Simon.
— . — a voz de Zoe outra vez me tira dos pensamentos e eu volto a olha-la. — Você... — ela para de falar, parecendo medir as palavras.
— Zoe, desembucha de uma vez! — resmungo encorajando minha amiga a falar. — Você vem comigo visitar a minha avó?
Arregalo os olhos assim que o pedido é feito, um tanto surpresa e desconfortável. Zoe não tem uma boa relação pais, apenas sua avó que vive em um lar de idosos, e mbora minha amiga tenha um apreço pela avó, ela quase nunca vai visita-la e muito menos nos pede para ir junto.
— Você tem certeza? Não seria melhor o Liam ir com você? — questiono e ela nega com a cabeça.
— Liam está no trabalho. — ela fala e eu deixo escapar um risinho ao imagino o meu amigo todo engravatado. Consigo imaginar Liam entornando um balde de cerveja e dançando quase nu no auge de seu estado bêbado. Agora, dentro de uma roupa social atrás do computador? Não mesmo.
— Tá, eu vou. Deixa eu pegar minha bolsa, e a gente precisa passar na minha casa antes pra eu tomar banho porque nem ferrando eu vou continuar usando essa roupa de ontem. — falo já me levantando, atravesso a porta que dá acesso as cabines e bato na porta onde Julie esta, abrindo o bastante para que ela ouça melhor a minha voz sem que eu precise atrapalhar o processo. — Estou saindo.
Depois de passarmos na minha casa, fazemos o caminho até a casa de repouso no carro de Liam que está com Zoe, durante o trajeto aproveitamos para colocar toda a conversa em dia e a loira não comenta sobre a noite passada, nem mesmo sobre o meu relacionamento com Simon, diferente de Julie. Ao chegarmos, olho em redor para reparar no lugar que mais parece uma casa de férias, há arvores, um jardim imenso na entrada muito bem cuidado com flores bastante coloridas e a própria casa é feita de madeira, deixando tudo ainda mais aconchegante. Só consigo imaginar quanto custa uma fortuna viver aqui.
— Seus pais devem ser podres de ricos. — comento com Zoe com os braços cruzados enquanto esperamos na fila para assinar a ficha de visitantes. Zoe revira os olhos ao meu lado.
— Por mim eles podem enfiar o dinheiro onde bem quiserem.
Solto uma risada fraca com a resposta de Zoe, acho divertido o fato dela ter pai e mão e escolher não colocar eles em sua vida. Quer dizer, seja qual merda que eles tenham feito, foi Zoe quem escolheu se afastar, ao menos seus pais quiseram ela por perto, diferente dos meus que me colocaram para adoção. Quando chega a nossa vez na fila, encosto o corpo no balcão e fico em silencio enquanto Zoe entrega sua carteira de identidade.
— Vou precisar da sua identidade, por favor. — uma menina de trança do outro lado do balcão fala comigo.
— Não trouxe. — dou de ombros ao responder, desviando os olhos para a janela.
— Tudo bem. Nesse caso, me passe apenas seu nome completo e a data de nascimento.
— , 4 de dezembro de 1996. — Ok. — a menina digita os dados no computador. — E o seu sobrenome?
Respiro fundo ainda encarando a janela e posso sentir o olhar de Zoe queimando sobre mim. Não satisfeita com o meu silencio, a recepcionista questiona outra vez, me fazendo olha-la com raiva.
— É só . Qual o seu problema em entender isso? — apoio as mãos sobre o balcão, encarando os olhos escuros da garota que agora parece sentir medo.
— Desculpa, eu só preciso de um sobrenome...
— Queiroz.
Me limito a responder, no mesmo segundo que a palavra sai dos meus lábios minha garganta arde como se dizer tal coisa tivesse me obrigado a fazer um esforço fora do comum, e fez. Só consigo sentir a mão de Zoe puxando meu braço, me tirando daquela sala pequena para adentrarmos de fato na casa.
— Desculpa por isso. — ela resmunga baixinho.
— Foda-se, Zoe. — murmuro em resposta, deixando claro no meu tom de voz que não há problemas com ela quanto a isso. — Onde está a sua avó?
Minha pergunta é respondida em silêncio, Zoe e eu caminhamos lado a lado pela casa que é tão bem decorada por dentro como é por fora, tem muita gente velha aqui e esse lugar cheira a uma mistura de naftalina com sabonete. Cruzo os braços abaixo dos seios enquanto andamos, ao longe posso ver dois caras jogando xadrez em uma mesa própria para isso, eles parecem empenhados e estão se divertindo, isso me traz uma certa graça. Logo estamos no quintal nos fundos, tão movimentado quando o interior da casa, mas ao que parece hoje é dia de visita. Zoe chama a minha atenção para uma senhora sentada em uma cadeira de rodas, quando me dou conta de que aquela é a sua avó, respiro fundo e solto o ar lentamente. Não sei porque estou nervosa, talvez seja o lugar, eu realmente odeio casas como está, ou talvez seja o fato de que famílias não são a minha praia, é como se eu não soubesse mais como agir quando estou perto de uma.
— Vó, que saudade! — Zoe se abaixa para abraçar a mulher que não é tão idosa assim, o que me faz questionar mentalmente o motivo da cadeira de rodas, já que suas pernas também não parecem atrofiadas. Mas eu e minha ignorância não somos ninguém para opinar sobre isso. — Essa é , minha amiga. , está é minha avó Charlote.
— Oi. — esboço um sorriso sem mostrar os dentes.
— Oi, , como você está? — a mulher mais velha sorri de bom grado, diferente de mim e me traz uma pontada de culpa. — Zoe, meu amor, não precisa se preocupar em vir, sei que você tem mais coisas para fazer.
— O quê? Como eu deixaria de vir te ver, vó. Tá doida? — a loira fala com a avó, que parece se divertir com o jeito como é tratada pela neta.
Zoe dá a volta e começa a empurrar a cadeira de rodas até um banco de concreto não muito longe dali, mas desocupado e embaixo da sombra. Permaneço no silencio
desconfortável, mas bem vindo enquanto minha amiga desfruta da companhia da avó, depois de certo momento observando as pessoas em volta, algo fora do comum chama a minha atenção para a senhora Charlote. Seu braço direito treme, os dedos das mãos também estão trêmulos e ela parece não se importar com isso, porque usa a mão esquerda para afastar os cabelos grisalhos do rosto. Somente quando meu olhar recai sobre as pernas da mais velha é que entendo o motivo que a faz ficar sentada em uma cadeira de rodas. Suas pernas tremem, assim como o braço.
— ? — Zoe chama a minha atenção e eu volto a olhar para ela.
— Hm?
— Minha avó perguntou no que você trabalha, eu disse que não trabalhamos juntas.
— Ah! Eu, hm, trabalho no estúdio de tatuagem da minha melhor amiga. — ao mencionar Julie, me sinto chateada pela situação em que estamos, mas logo a pontada de tristeza some. — Zoe, Zack e Liam são os únicos do nosso grupo de amigos que fazem algo descente. — sorrio ao dizer, me referindo ao emprego que a loira tem como auxiliar de dentista.
— Mas por que trabalhar com tatuagem é considerado um emprego não descente? — a mulher pergunta e eu ergo uma sobrancelha, curiosa. — Suas tatuagens são bonitas, parece que você gosta disso. Além do mais, se você trabalha honestamente, então é um emprego descente.
Depois de ser completamente nocauteada por uma senhora de setenta anos, tudo o que posso fazer é rir em divertimento e assentir ao seu comentário. Charlote tem uma alma leve, da vontade de ficar sentada aqui por horas em sua companhia, mesmo que em silêncio. Mas não demora para o sol começar a sumir, indicando que o horário de visitas terminou, eu e Zoe acompanhamos sua avó até o quarto no segundo andar, cujo trajeto é feito em uma rampa construída para adaptar pacientes como a Charlote, e eu fico de pé na porta esperando minha amiga se despedir. Quando isso é feito, a mais velha olha para mim, já sentada em sua cama e acena com um sorriso nos lábios e a mão trêmula. Impossível não corresponder o afeto.
— Se cuida, Charlote. — Aceno de volta, com o mesmo sorriso no rosto e deixo que Zoe feche a porta.
— Obrigada por ter vindo, . Eu não gosto de vir sozinha, não é sempre que encontro minha vó sem os meus pais aqui. — Zoe me agradece enquanto descemos as escadas para o andar de baixo.
— Acho que você deveria vir mais vezes, ela gosta bastante de você, deu pra ver.
Apesar de comentar, não recebo uma resposta. Caminhamos em um silêncio confortável até o carro, passo o cinto de segurança e ao recostar a cabeça no banco de couro, sinto meu estômago embrulhar e faço uma leve careta com isso. Eu realmente preciso ingerir alguma coisa, não tenho paciência para nada disso. Parecendo entender que não estou bem e querendo mudar o meu foco, Zoe volta a se fazer ouvir quando começa a dirigir.
— Minha avó tem Parkinson, acho que você percebeu. — ela suspira ao dizer, viro a cabeça para olhá-la e assinto, mesmo sabendo que ela não está olhando para mim.
— É por isso que ela está na cadeira de rodas?
— Sim. Ela consegue andar, mas caiu da escada há três meses atrás porque sentiu tremor nas pernas e perdeu o equilíbrio. Minha mãe ouviu o conselho do médico e optou por colocar ela em uma cadeira de rodas. Tem evitado esse tipo de acidente, a gente nunca sabe quando ela vai sentir essas coisas, é de repente.
Respiro fundo ao ouvir e viro o rosto para olhar para a estrada, sem saber o que responder sobre isso. Porra, o que eu vou falar? “Que merda.”?! Batuco com os dedos no suporte da porta apenas para afastar o silêncio constrangedor, no entanto, ele não parece tão desconfortável assim para Zoe, que continua quieta.
— O pessoal está lá em casa? — pergunto, finalmente e a loira apenas dá de ombros sem saber responder. Nesse momento não posso deixar de perguntar algo que realmente tenho curiosidade em saber. — Por que você não ficou com raiva de mim igual a Julie? — Zoe solta uma risada fraca, me fazendo erguer uma sobrancelha em curiosidade e olhar para ela.
— A Julie se importa com você, por isso ela fica tão possessa de raiva quando você faz merda por causa do Simon.
— Ah, então isso quer dizer que você não se importa comigo? — ergo as duas sobrancelhas, brincando com as palavras, Zoe ri.
— Não fode, . Julie e você são irmãs, é isso.
Abaixo o olhar, encarando a âncora desenhada no meu antebraço esquerdo. Zoe tem razão, afinal, Julie e eu temos mais do que uma amizade, somos como irmãs. Em três anos eu posso dizer que tudo o que tenho é ela como minha família, talvez Zoe tenha razão quando diz que Julie se preocupa e se importa comigo. Eu sei que Simon não é um dos melhores homens do mundo, mas por algum motivo tento dizer o contrário para mim mesma todos os dias. Ao tirar o celular do bolso e ir até a conversa com o meu namorado, encaro a última mensagem recebida ontem à tarde, nada mais do que isso. Nada.
O nome de Zack brilha na parte superior da tela e eu abro a conversa para ler a mensagem nova.
“Cadê vocês?? Estamos no Charlie’s, venham pra cá.” — O pessoal está no bar do Charlie. — falo com Zoe ao mesmo tempo que bloqueio a tela e devolvo o celular para o meu bolso.
— Uuh, então vamos para o bar do Charlie!
***
Estou na minha terceira cerveja quando a porção de batatas fritas chega, debruço sobre a mesa de madeira e pego duas, levando a boca. Estou sentada em uma das pontas do banco de couro vermelho que cerca a mesa redonda, ao meu lado está Zack, e então Liam, Zoe, Mariah e Julie fechando a outra ponta.
— Não, porra, você não pode comprar a camisa do time antes de começar a venda dos ingressos pro jogo! Da azar! — Zack garanta para Mariah, animado demais com a sua, eu não sei, quinta dose de tequila?
— Ah, qual é, eu não vou perder o desconto da loja, Zack! São U$100,00! Nos dias normais essa camisa está o dobro do valor. — Mariah se defende enquanto eu como mais da batata e termino a minha cerveja.
— Foda-se, se os Lakers perderem eu vou colocar a culpa toda em você. — é a vez de Liam falar e eu rio divertida da briga idiota dos dois.
— Meu Deus, como vocês são insuportáveis, essa superstição simplesmente não faz o menor sentido. Deixem a garota comprar a merda da camisa. — Zoe resmunga.
— Se eu fosse a Mariah, comprava logo a camisa e os ingressos pra todo mundo. — Julie diz escondendo um sorriso na sua long neck, Mariah empurra levemente a garota com o ombro e o sorriso que brota nos lábios de ambas é pra lá de sugestivo.
— Eu acho uma ótima ideia. Assino em baixo, Mariah. — Zoe da de ombros.
— Desde que seja antes de comprar a camisa. — Zack volta a mencionar o assunto e eu reviro os olhos.
— Como vocês são chatos! Preciso de outra bebida pra aturar isso. — falo erguendo minha garrafa vazia.
Levanto da mesa e atravesso o bar movimentado até o balcão, debruço ali e chamo pelo barman, que me atende no minuto seguinte. Depois de pedir mais uma
rodada de cerveja para a mesa, peço um drink de maracujá com o dobro de vodka e espero enquanto a bebida é preparada.
— Obrigada.
Agradeço ao cara assim que pego o copo em mãos, dou um gole pequeno já podendo apreciar o gosto marcante do maracujá e giro sobre os calcanhares para voltar para a mesa. Um baque forte contra o meu tronco me faz prender a respiração e tombar para atrás, ao mesmo tempo que o copo vira em cima do meu peito e minhas costas batem contra o balcão, meus pés tropeçam e eu caio sentada no chão. Os dois segundos seguintes são praticamente inexistentes porque o que minha mente consegue fazer é associar e entender o que acabou de acontecer. Quando olho para o meu peito coberto pela bebida amarela, sujando todo o meu cropped branco e o macacão jeans e me dou conta do quanto minha bunda dói naquele chão, meu sangue imediatamente esquenta e eu solto um grunhido de raiva.
—Que merda você fez?!
Minha voz sai alta e estridente, totalmente no tom contrário do que normalmente é. Mesmo sem ver que alguém fez isso, minha mente é rápida o bastante para deduzir que eu não cairia de bunda no chão por livre e espontânea vontade.
— Cacete, me desculpa. Me desculpa! Deixa eu te ajudar.
Ao ouvir a voz de um homem, ergo o olhar e cerro os dentes quando vejo o autor bem na minha frente. Ele se abaixa diante de mim, suas mãos são ágeis em segurar nos meus braços para me erguer outra vez, já que minhas mãos estão lambuzadas e ainda seguram o copo agora vazio.
— Não toca em mim! — esbravejo. — Sai, porra!
— Você pode ter se machucado feio, deixa eu te ajudar. — ele insiste. — Eu não preciso da sua ajuda. Sai!
Meu grito parece ser o bastante, porque ele se levanta com as mãos erguidas em rendição, mas com os olhos atentos em mim como se estudasse meus movimentos para ter certeza que eu não quebrei a merda da bunda. Respiro fundo, olho para os lados em busca de um lugar para colocar o copo, o apoio em cima da banqueta e me seguro na outra para levantar. Assim que ergo o corpo, minha lombar lateja em dor e eu faço uma careta, deixando escapar um gemido.
— Viu? Você se machucou. Me deixa te ajudar, vai. — o loiro insiste e eu lanço um olhar sério para ele. Dou um passo à frente e posso encarar melhor seus olhos azuis.
— Vai à merda. — falo em português, causando nele o efeito de curiosidade desejado por mim.
Volto para a mesa andando devagar, mancando o lado direito pela dor que sinto na região baixa das costas. Todos na mesa me olham surpresos e curiosos.
— Que porra acon... — Liam tenta questionar.
— Julie, posso pegar o seu carro e você vai com a Mariah depois? — direciono meu olhar para a minha amiga pela primeira vez desde que brigamos mais cedo, e ela faz o mesmo. Diferente do meu, o olhar dela carrega preocupação.
— Vamos, eu levo você.
— Um idiota tombou comigo e eu caí no chão, mas estou bem.
Trato de tranquilizar os meus amigos que estão na mesa antes de sair do bar com Julie. Me sinto culpada por fazer ela vir comigo, sei que ela preferiria continuar com Mariah e os outros, mas também sei que ela não me deixaria voltar sozinha, nem mesmo se eu implorasse. O trajeto para casa é feito em silêncio, a blusa grudou no meu corpo de tão melecada que ficou e eu nem tive cabeça para limpar as mãos antes de sair. Ao chegarmos, vou tirando o macacão do meu corpo enquanto caminho pela casa até o banheiro do segundo andar, já despida, entro no box e tomo um banho demorado, um que faz até mesmo a dor ir embora. Depois de limpa e devidamente vestida com um short rosa claro do pijama e um casaco de moletom, faço a única coisa que é capaz de me tirar do estresse, eu fumo. Caminho pelo quarto até a varanda, me sento no sofá, estico as pernas de modo a apoiar os pés na pequena mesa e dou uma tragada no baseado, soltando a fumaça pelos lábios alguns segundos depois.
— Ei. — A voz de Julie se faz ouvir, viro o rosto e encontro minha amiga sentando ao meu lado. — Toma, vai ajudar na dor. — Ela me entrega um comprimido que eu logo tomo a seco, como de costume.
— Obrigada.
Jogo a cabeça para atrás, deitando no encosto do sofá e escorrego o corpo até a beirada, podendo ter uma visão melhor do céu estrelado. O fato de Julie fazer o mesmo que eu me traz uma rara sensação de lar, de conforto, um meio sorriso aparece nos meus lábios e eu o escondo ao levar o cigarro outra vez aos lábios. Quando Julie estica os dedos para mim, entrego o baseado a ela.
— Preciso pedir desculpas ou a gente pode ficar bem de uma vez? — ela pergunta depois de tragar e eu solto uma risada baixa, viro o rosto para ela e sorrio.
— Acho que quero ouvir um pedido de desculpa. — Julie revira os olhos e ri, por fim, deito minha cabeça em seu ombro e solto um suspiro de quem tira alguns bons quilos de cima dos ombros. — Eu gosto da Mariah, ela é nova no grupo mas é legal. Eu dou a minha benção para o namoro de vocês.
— ! — Julie gargalha, me devolvendo o cigarro. — Você é uma idiota, não preciso da sua benção. Fico feliz que você goste dela, mas estamos indo devagar nisso.
Esboço um sorriso ao ouvi-la e apenas concordo, ficando em silencio e desta vez realmente relaxada, não sei se pela maconha ou as pazes com Julie. Eu nunca me importo com o que me faz ficar bem, desde que eu realmente fique, mesmo que seja passageiro.
LOS ANGELES, EUA. ATUALMENTE. É início de setembro e Los Angeles ainda está quente, mas depois de três anos vivendo na cidade, ainda não consigo sentir a temperatura tão quente como meus amigos sentem. Uma boa brasileira que cresceu sob o calor de 40°C do Rio de Janeiro não consegue suar muito na cidade dos anjos. Quando alguém me diz que quer conhecer o Brasil e as praias eu dou risada, não aguentariam por mais de uma semana.
Hoje é domingo e embora ontem tenha sido o início do fim de semana, Julie abriu o estúdio de tatuagem para receber um grupo de clientes antigos que se mudaram para Nova Orleans mas que estão na cidade por alguns dias. E hoje, para afogar todo o estresse e cansaço da semana, Zack fez o convite para passarmos o dia na casa de praia de seus pais, uma casa nada humilde e com uma vista incrível para o mar que fica, literalmente, no quintal dos fundos. Enquanto Zack e Liam preparam o churrasco no quintal da casa, Julie toma sol na cadeira ali perto, Zoe prepara alguma coisa na cozinha e eu tento decidir entre o biquíni azul claro e o preto. A maior parte da minha vida foi em um orfanato, não saía muito de lá e só pude conhecer o mar pela primeira vez aqui,
sozinha, uma experiência que vou levar para a vida toda. Era a minha primeira noite em Los Angeles, eu havia acabado de chegar do aeroporto e mal consegui me comunicar com o motorista, tamanho o nervosismo. Sentia como se estivesse fugindo de um assassinato que eu mesma cometi, sentia que poderia ser pega a qualquer minuto e seria obrigada a voltar para o Brasil. Naquela primeira noite eu não sabia onde dormiria, não conhecia absolutamente nada do país e até o nome das ruas era uma completa confusão para mim, pedi ao motorista do táxi para que me levasse até a praia, porque o mar é mesmo, não importa onde seja.
Mas outra coisa também será sempre igual, a minha dificuldade para encontrar um biquíni usável nesse país. Eu não sei o porquê da mania que as mulheres daqui tem de usar uma calcinha tão absurdamente grande e tive que aprender a costurar para deixar as minhas mais em um estilo de quem quer queimar a bunda e menos no de quem é avó de três crianças.
— Qual você vai usar? — Zoe pergunta quando entra no quarto, estou sentada na cama encarando as duas opções já tem alguns bons minutos.
— Não sei. — bufo, dando de ombros. — Acho que o azul, mas o preto...
— Acho que o azul claro combina mais com o seu tom de pele. E aí você me empresta o preto. — a loira abre um sorriso sínico no rosto e eu gargalho, atirando as peças pretas na sua direção.
— “O azul combina mais com o seu tom de pele”. — rio ao imitar o tom de voz de Zoe. — Sei, sonsa.
— Mas é verdade!
Ela rir já fechando a porta do quarto e não demora até que nós duas nos troquemos, e realmente, depois de me olhar no espelho me sinto bem com a cor escolhida.
— Estou morrendo de fome.
Resmungo descendo a escada que leva até a sala de tv, posso ver os meninos do lado de fora e vou até eles, apoio os braços nos ombros de ambos ao ficar no meio onde posso ver as carnes dourando na churrasqueira e aspiro o cheiro gostoso que emana dali.
— Minha barriga está roncando. — murmuro, deito a cabeça no ombro de Zack e posso sentir os dois pares de olhos queimando em mim. Isso me faz abrir um meio sorriso, mas trato de me afastar.
— Toma, tem um pedaço aqui, acabou de sair. — Zack fala ao espetar o garfo em um pedaço de carne mal passada, abro a boca e ele coloca a carne ali. Solto um suspiro enquanto mastigo a carne deliciosamente suculenta. O loiro ainda está me olhando
com um semblante suspeito, parece viajar em seus pensamentos e isso me faz arquear as sobrancelhas.
— Gostosa!
Julie grita do outro lado da varanda, o que quebra seja lá qual for a tensão que tenha se instaurado entre mim e Zack. Me viro para ver Julie deitada no mesmo lugar que a deixei antes de subir, abro um sorriso e pisco para a minha melhor amiga antes de virar para pegar uma cerveja dentro do balde com gelo.
— As batatas estão prontas! — Zoe cantarola trazendo de dentro da cozinha uma travessa com batatas temperadas. O olhar de Liam queima sobre a sua namorada e eu sorrio com isso.
— Que porra de biquíni é esse, Zoe? — ele questiona, ainda segurando um garfo e em uma mãos e um baseado na outra. Zoe olha para seu próprio corpo depois de colocar a travessa em cima da mesa de madeira no meio da varanda e lança um olhar triste para Liam.
— Não gostou? Eu achei...
Liam cala a amada com um beijo pra lá de quente, fazendo com que eu, Julie e Zack cantamos em coro uma zoação para o casal. O que Liam sussurra no ouvido de Zoe eu não sei, mas tenho certeza de que ele adorou o biquíni e os dois não vão deixar eu dormir essa noite, já que o quarto é em cima do meu.
— Ai, esses dois... — Julie suspira quando me sento na ponta da espreguiçadeira onde ela está deitada. — Seria muito pedir alguém para dar um beijo desses e depois transar até o corpo não aguentar mais?
— Você tem a Mariah. — dou de ombros ao comentar, dou um gole grande na cerveja e deixo a lata de lado para prender meus cabelos em um coque no alto da cabeça. Julie murmura algo impossível de entender antes de falar.
— Mas ela não está aqui, está?
— Não. E por que ela não está aqui?
— Por que ela está estudando, tem uma prova amanhã.
Mariah está em curso que formará ela em auxiliar de enfermagem em breve, para só então ingressar na faculdade. Eu acho bizarro o jeito como Julie encontrou alguém tão diferente dela, mas, segundo minha amiga, isso ainda não é um namoro.
— Já está sentindo saudades, Julie?! Uau, que bom que nem é um namoro, não é?! Imagina se fosse? Seria terrível!
Contenho meu sorriso ao levar a lata de cerveja aos lábios outra vez e posso ver de canto de olho quando Julie revira os olhos, mostrando o dedo do meio para mim. O vento leve sopra os meus cabelos para frente, desfazendo o coque de antes e eu preciso colocar uma boa mecha atrás da orelha, meu olhar cruza com o de Zack por breves segundos, o bastante para fazer uma inquietação formigar na região baixa da minha barriga. Não sei que tipo de sensação é essa, mas ela não deve existir e precisa ir embora tão rápido quanto se instaurou em mim, afinal, Zack é o meu melhor amigo e isso faz com que eu me sinta mal de um jeito incômodo.
— Venham, seus mortos de fome, as carnes já estão prontas. — Liam anuncia, arrancando murmúrios de fome de todos.
O início de tarde é tomado por muita comida, bebida para o calor e conversa fiada. Apesar da casa ser grande o bastante para ter espaço para cada um, por algum motivo nós cinco preferimos passar quase o dia inteiro na varanda dos fundos da casa, com uma vista incrível do mar. Quando a tarde termina e o sol começa a deixar o céu em um tom alaranjado enquanto se põe, meus pés estão enterrados na areia, bem no limite onde as ondas quebram e conseguem molhar meus tornozelos. Acabamos de jogar vôlei dentro do mar, que acabou por terminar na areia e deu a Julie um ótimo machucado nos joelhos quando caiu com tudo sobre as conchas. Enquanto minha amiga está dentro de casa fazendo um curativo, Zoe e Liam estão tomando banho de mar a alguns metros de distância e Zack, bem, não faço ideia de onde ele esteja. Agora que o sol está quase sumindo, o vento tem se tornado mais fortemente e bem mais frio, meu corpo coberto apenas pelo biquíni e um short jeans está completamente exposto a ele. Abraço os meus próprios braços, dobro os joelhos para cima e me debruço neles, não podendo deixar de notar como Liam e Zoe são ótimos juntos.
Seus sorrisos são sinceros, isto é indiscutível. Quando estão juntos, como agora, os olhos de Liam brilham para Zoe, que parece ter uma porção de borboletas no estômago que não conseguem deixar ela parar de sorrir para o amado. O carinho é mútuo e o amor é recíproco. Quando os conheci eles já namoravam, não sei quando começou, mas sei que nunca vai terminar. Bom, eu torço para isso, de verdade. Acho que é disso que a vida é feita, afinal, de amor, de carinho, de esperança. Minha maior intimidade é com Zoe, mas gosto demais de Liam pelo cara incrível que ele é, e embora sejam namorados, os dois são nossos amigos, são do grupo. Julie e Mariah ainda não oficializaram o que tem, mas a garota se tornou parte da nossas vidas em poucos dias, hoje também a consideramos e eu realmente gosto dela. Zack nunca namorou sério, mas da última vez que esteve em um relacionamento mais longo não deixou de trazer a garota para nos conhecer, para ser sincera eu nem me lembro o nome dela, mas tenho certeza de que ela seria uma de nós hoje se os dois não tivessem terminado. Por que com Simon não pode ser assim também? Porque o meu namorado não gosta dos amigos e simplesmente prefere chamá-los de drogados desocupados ao invés de tentar conhecer eles de verdade? Será que eu sou a errada por namorar um cara tão diferente? Talvez não seja eu a errada, quer dizer, Simon e eu não nos vimos desde o aniversário de Zoe, o que já faz duas semanas, e desde então só trocamos mensagens um único dia, que também já faz um tempo.
Respiro fundo quando sinto que meu peito está apertando outra vez e levo o cigarro aos lábios, tragando com certa força. O vento está cada vez mais forte e eu posso sentir meus olhos e nariz ardendo pela droga recém ingerida há apenas algumas horas. Essas merdas não funcionam mais para mim, parecem cada vez mais perder o efeito mais rápido. Por que eu estou sentindo essa merda de dor invisível, afinal?! Assopro com força, soltando a fumaça e afundo o que restou do cigarro na areia ao meu lado. Foda-se essa merda de relacionamento. Sinto meus ombros sendo aquecidos e viro o rosto para ver Zack ao meu lado, sentando na areia assim como eu depois de colocar uma camisa sua em minhas costas.
— Você pensa demais. — ele comenta antes de dar um gole em uma bebida roxa, olhando para o mar diante de nós que já está completamente escuro. Só então me dou conta de que Liam e Zoe não estão mais por perto. Solto uma risada fraca e assinto com a cabeça.
— Nem a porra da bala está conseguindo mudar isso mais. — um suspiro escapa dos meus lábios, Zack me olha rapidamente antes de me oferecer a bebida que ele trouxe e dou apenas um gole antes de devolve-la. — Por que anoitece tão rápido? O pôr do sol é tão lindo e a gente pouco consegue apreciar isso. — murmuro e Zack ri baixinho ao meu lado.
— Sabe o que é mais engraçado? Você está tão na merda que bebeu suco de mirtilo. — ele esconde um sorriso travesso nos lábios ao levar o copo outra vez aos lábios. Abro a boca em completa indignação e acerto um tapa bem dado no ombro largo de Zack.
— Por que você fez isso? Sabe que eu não gosto, merda! — reclamo em alto e bom som, com a cara emburrada, solto um grunhido enquanto tiro a camisa branca dos ombros para vesti-la. — É a fruta mais sem noção que existe.
— O que eu fiz? Só te ofereci, e você bebeu. — o loiro sorri de forma sapeca, claramente contente com o feito e seus fios longos caem em seus olhos vermelhos e fundos, não que ele se importante com isso. — E frutas não precisam ter noção, . Dizer isso é que é sem noção.
— Pois não ofereça mais. — estendo uma das mãos e afasto os fios compridos dos olhos do loiro, penteando com os dedos para trás. Zack encontra os meus olhos e eu juro poder sentir seu corpo tensionar ao meu lado. Engulo seco e umedeço meus lábios de forma lenta, tratando de afastar a mão. — Eu acho que nada nessa conversa tem noção, na verdade. — minha voz falha e eu amaldiçoou todas as minhas gerações por isso. Que droga está acontecendo?
Diferente de mim, Zack não parece confuso, ao menos não quanto aos seus sentimentos, mas consigo ver em seus olhos a luta interna que ele trava. Penso em abrir a boca para dizer alguma coisa ridícula o bastante para quebrar o clima que se instaurou entre nós outra vez, mas por algum motivo não consigo. Talvez porque eu
esteja gostando de sentir uma borboleta teimosa que viaja pelo meu estômago com o olhar esverdeado de Zack focado em mim.
— Você está sóbria? — ele questiona em um tom baixo e calculista, incapaz de desviar os olhos de mim, parece estudar o meu rosto em uma distância completamente nova e perigosa. A única coisa que consigo fazer para responder esta pergunta é balançar a cabeça lentamente de um lado para o outro. — Ótimo, porque eu também não.
Zack é ágil em segurar a parte de trás do meu pescoço e avançar em meus lábios em um beijo que de início é atrapalhado, mas assim que nossas bocas se conhecem, não demora até que acostumem uma com a outra e isso torna o beijo intenso. Minha mão pousa no peitoral largo de Zack, rapidamente ele toma isso como incentivo e desce a mão livre até minha cintura, puxando meu corpo para si. Logo meus dedos sobem por sua pele quente até os cabelos da nuca, onde alguns fios são deliciosamente puxados.
— ...
O loiro murmura entre meus lábios e isto basta para que eu acorde do maldito transe, ainda em tempo de sentir sua boca colada no meio caminho entre minha bochecha e pescoço. Coloco as mãos em seu peito e o empurro o bastante para que possamos ter um distância o mínimo segura possível, diante de mim Zack me encara com os olhos arregalados e assustados e a respiração tão acelerada quanto a minha.
— Que porra você está fazendo? — questiono assustada, ainda o segurando pelo peitoral. Rapidamente afasto as mãos e me levanto, bato a parte de trás do meu short para tirar o excesso de areia dali e Zack já está de pé, segurando meu braço para que eu me volte para ele. Outra vez nossos olhos se encontram, mas agora eu balanço a cabeça em sinal de negação. — Eu nem sei dizer de quantas maneiras isto está errado, Zack, por Deus!
— , para, olha para mim. — o loiro pede, com uma repentina e estranha calma. Respiro fundo antes de voltar a olhar para ele, que solta o meu braço. — Me desculpa. Eu não sei o que aconteceu, e-eu, porra... — ele tenta encontrar palavras e eu franzo o cenho em total curiosidade. — Você é linda, pra cacete, e me atrai de um jeito que nem eu queria que fosse tão forte. Isso não vai acontecer de novo, tá bom? Eu prometo. Você é minha amiga, porra!
Encaro Zack por alguns segundo depois de ouvi-lo e solto uma risada baixa, o que o pega desprevenido. É sério que ele me acha bonita assim? Quer dizer, nunca imaginei que meu amigo sentisse algum tipo de atração física por mim e, apesar de acha-lo muito em forma e incrivelmente lindo, jamais pensei em Zack desta forma. Mas eu sei de duas coisas, a primeira é que ele está bêbado e eu drogada, e a segunda é que eu aceitei o beijo quando na verdade tinha tudo para parar.
— Isso não aconteceu. Relaxa, tá?
Falo e pisco de um olho para o meu amigo antes de me afastar e seguir o caminho pela areia até a casa novamente, deixando Zack para atrás.
Enquanto meus pés me levam para dentro da casa, minha mente está em um conflito entre relaxar sob o efeito do entorpecente e enlouquecer com o beijo que eu e meu melhor amigo acabamos de ter. Isso foi completamente aleatório, completamente fora do comum e eu tenho certeza que não quero repetir, Zack e eu sempre fomos carinhosos demais um com o outro e nunca houve limite em nossa amizade. Talvez nós dois precisamos rever isso. Mas, cacete, como assim nos beijamos? Eu estraguei a nossa amizade por ter aceitado o beijo? Eu deveria ter impedido que isso acontecesse! Eu tinha tudo para impedir! Não quero que Zack pense que estou dando a ele algum tipo de passe com isso, mas também não quero que meu amigo se distancie, ele e os outros são tudo o que eu tenho!
Enquanto subo a escada para o andar de cima, pego o celular no bolso quando o sinto vibrar, imaginando ser uma mensagem de Simon, mas meus olhos passam por uma mensagem automática e eu junto as sobrancelhas em um muxoxo. Ele não vai mais mandar mensagem? Nem se quer responder o que enviei ontem?
Sinto minha cabeça latejar em sinais de que o efeito da droga está passando, solto um grunhido enquanto coloco a mão sobre o lado esquerdo e sigo pelo corredor até o meu quarto. Quando estou passando em frente a porta do quarto de Zoe, escuto a voz da loira vindo de dentro do cómodo, completamente risonha.
— Chata demais, mas é não como se a gente tivesse opção de não aturar, não desde que Julie inventou de levar ela pra dentro de casa.
— Ah, não sei, eu sempre achei ela meio maluquinha de um jeito bom. — a voz de Liam se faz ouvir e eu paro no mesmo instante, encarando a porta de madeira.
Eles estão falando de mim? Estão, não estão? Claro que sim, quer dizer, de quem mais seria?
Me sinto suja, irritada, com uma dor de cabeça ferrada e um gosto amargo na boca. Minha cabeça está zonza, meu estômago revira como se eu pudesse colocar tudo para fora aqui mesmo. Corro pelo corredores até entrar no meu quarto e arranco a camisa do meu corpo com certa raiva, jogo o tecido no chão, adentro ao box no banheiro e deixo a água quente cair sobre mim enquanto vou puxando as peças do biquíni para longe do meu corpo. Os laços que fecham o sutiã e a calcinha estão apertados e difíceis de sair, e isso me irrita.
— Sai, merda! — esbravejo, minha voz ecoa dentro do box abafado pela fumaça quente e só quando ouço a minha própria voz é que percebo o choro que sai livre por minha garganta.
Um, dois, três soluços e eu escorrego pelo azulejo até me sentar no chão molhado, recosto a cabeça ali e fecho os olhos, sentindo a água cair diretamente no meu rosto. Por mais que eu me molhe, não consigo me sentir limpa.
BRASIL, RIO DE JANEIRO. 4 ANOS ATRÁS. O verbo To Be que aprendemos na escola não é nada que possamos levar para o curso de inglês, por Deus, não mesmo. Como as pessoas tem coragem de dizer que inglês é uma das línguas mais fáceis de se aprender? Certamente eu preferia estar estudando espanhol, mas ao invés disso estou no meu primeiro módulo do curso de inglês. Laura orientou que eu entrasse em uma turma on-line para me sentir mais à vontade, e realmente é menos vergonhoso tentar se comunicar em uma língua diferente da minha através do computador, assim, se tudo der errado, eu posso simplesmente fechar a tela do notebook e nunca mais aparecer na aula.
— Teacher, how do you say “Quero viajar sozinha.” In English?
— , you can say: “I want to travel alone”.
— I want to travel alone.
— Really? And where do you want to go?
— To england.
Um sorrio lado esboça em meus lábios, meus olhos em uma perfeita sintonia com os de Sandra, minha professora de inglês que fala tão perfeitamente bem o idioma. Penso se um dia eu conseguirei ser tão boa quanto ela.
O som da maçaneta se movendo me tira da concentração da aula, tiro os fones dos ouvidos e olho para a porta a tempo de ver Laura e Daniel entrando ali. Me remexo de forma desconfortável na cadeira em frente a escrivaninha no meu quarto e clico no botão que desliga a minha câmera e microfone, mas me mantenho na sala de aula virtual.
— Oi, amor! — Laura está belíssima em seu vestido rosa claro que cobre até um pouco acima das canelas, com o decote pouco aparente e as mangas até os cotovelos. Seus cabelos escuros estão perfeitamente penteados e ondulados e a maquiagem leve que ela fez a deixa ainda mais nova. Ela se aproxima de mim acompanhada do marido e deixa um beijo carinhoso no topo da minha cabeça. — Estamos indo, vamos jantar com uns amigos. Você pode pedir comida ou se quiser sair, meu cartão está na gaveta do quarto, ao lado da cama.
— Tá bem, obrigada. Divirtam-se! — me limito a dizer com um sorriso fraco, já que todos os meus músculos estão tensionados. — Vão voltar tarde?
— Não pretendemos, já que amanhã é segunda. Qualquer coisa liga pra gente!
Ela diz com o sorriso de sempre nos lábios e se afasta, enlaçando os dedos nos de Daniel. O marido deixa um beijo na mão da esposa e se vira para ela.
— Vai indo na frente? Vou pegar a carteira no quarto.
Engulo seco no mesmo instante, um arrepio toma toda a minha espinha e eu posso jurar que meus músculos estão empedrados. Eu sei que Daniel não esqueceu sua carteira, e por isso paro de respirar assim que a porta se fecha atrás de nós.
— Como está indo a aula de inglês? Tem conseguido aprender?
O homem pergunta de forma tão casual que me faz desejar, com todo o coração, que este momento fique apenas nisso. Meus dedos deslizam pelo fio do fone de ouvido em puro nervosismo, umedeço o lábio inferior e fico encarando a professora que fala do outro lado da tela, sem imaginar o que se passa desta lado.
— Uhum, tá indo bem.
É o que digo, o que quero e consigo dizer. Daniel vai até a janela, ele olha para baixo parecendo se certificar de que sua esposa está na rua e então se volta para mim em passos vagarosos. Ao que o mais velho para atrás de mim e apoia uma das mãos na escrivaninha a minha frente, sua mão livre me toca e eu fecho os olhos, podendo ouvir sua voz próxima do meu ouvido.
— Você está tão cheirosa, . Parabéns, você tem se tornado uma mulher maravilhosa, todos os homens vão querer você. — Meu coração acelera no peito, os olhos fechados com tanta força que tremem, Daniel continua me tocando e eu me sinto sufocar. — Mas por agora eu sou o seu namorado, não é?
Ele sorri, eu posso sentir o seu sorrio quando seus lábios tocam a pele do meu pescoço, no mesmo instante tombo a cabeça para o mesmo lado, afastando o meu corpo do dele como consigo. Quando Daniel levanta e se afasta, engulo seco e fico à espera do som da porta se fechando, e isso acontece no segundo seguinte. Parece que todo o ar que eu estava prendendo sai de uma única vez e eu debruço sobre a madeira branca diante de mim, afundando o rosto entre os braços. Estou cansada, esgotada.
LOS ANGELES, EUA. ATUALMENTE. Eu sempre consigo chegar nesse fundo, sempre consigo chegar na conclusão de que a culpa de tudo é minha. Eu tenho plena certeza de que a vida é muito mais do que isso, que lá fora bilhões de pessoas vivem felizes em suas vidas medíocres, mas singelas e emocionantes de alguma forma. Quem sou eu, afinal? Vivi dezoito anos da minha vida sem identidade, não tinha nada além do meu nome, nada além de mim
mesma e uma poça de desejos e sonhos. Quem eu sou hoje? Tenho identidade? Eu estou sendo quem eu realmente sou, ou tento construir uma personalidade que na verdade não existe? Cheguei em um país completamente ingrato e sem cor, sem vida, um país mentiroso de pessoas mentirosas que vivem com seus narizes empinados. Roubei a vida de Julie para mim, roubei seus amigos, sua casa, seu espaço, sua atenção. Estou vivendo a minha vida ou a vida de alguém? Zoe, Liam e Zack são meus amigos ou amigos de Julie que apenas me acolheram? Eu vivo a vida dela ou a minha? Eu posso ir para o outro lado do planeta, mas nunca vou ser capaz de me encontrar. E quanto a Simon? Por que diabos ele não me manda uma mensagem ou me liga?
Os soluços já doem meus pulmões, minhas mãos estão trêmulas e eu quase não consigo enxergar a própria agulha, mas meus dentes são fortes em puxar o cadarço amarrado em meu braço direito e a experiência basta para que eu consiga perfurar minha pele e injetar toda a droga de dentro da seringa.
“Me desculpa. Você é linda, eu prometo que não vai acontecer de novo.” – Zack. “Por hora, eu sou o seu namorado.” — Daniel. “Liam está no trabalho.” “Chata demais.” — Zoe. “Mariah está estudando, tem uma prova amanhã.” — Julie. “Eu deveria ser o suficiente pra você.” — Simon. Todos tem alguma coisa para fazer da vida, todos tem um emprego. Menos a , porque ela é uma fracassada de vinte e quatro anos. Pra que você fugiu do Brasil, ? Se não faz merda nenhuma da vida aqui?
Solto uma risada alta do meu próprio pensamento, eu sou estúpida. Meus lábios estão ressecados e meu braço dói, provavelmente porque eu estourei a porra da veia. Deixo a seringa vazia cair no chão do quarto ao meu lado, recosto no baú em frente a cama e encaro o teto, já podendo sentir minhas forças esvaírem.
— ? Caralho, ! Merda, merda. Socorro! Chamem uma ambulância!
Julie abre a porta do quarto e sua voz ecoa tão alto que me faz resmungar, a ruiva se joga aos meus pés e sacode meus ombros, eu abro os olhos para vê-la e tento rir do desespero da minha amiga, mas a difícil entrada de ar nos meus pulmões não me permite isso.
— Por que ele não consegue me amar? — pergunto. — Você me ama, ele tinha que conseguir me amar também. Mas tá tudo bem, nem eu gosto de mim.
Murmuro a última frase, não por vontade própria, mas por sentir que toda a minha força já se esvaiu e eu não consigo nem mesmo sustentar o peso da minha cabeça, além de não conseguir puxar ar o suficiente para gritar.
— Do que você tá falando, ? Por Deus, o que você fez?
Julie parece encontrar a seringa no chão, porque seu estado muda bruscamente. Mas seja como for, me sinto leve agora, me sinto em paz, liberta de todos os meus fantasmas. Feliz como nunca consegui ser em toda a minha vida.
Thomas William
Na fisiologia existe um termo chamado homeostase que indica equilíbrio, para tudo o que está elevado, há também o baixo, e para tudo o que está demasiado, há o que também está precário. Homeostase é o equilíbrio do corpo, é a busca pelo constante equilíbrio e isso não significa estar sempre em uma linha reta, mas tudo o que sobe, em um certo momento precisa descer para então subir de novo. O nosso coração, por exemplo, vive em uma perfeita condição de homeostase, segundo bate, segundo não. Ser médico é nunca estar satisfeito, nunca estar em plena calmaria e paz, ser médico é lutar junto com o diagnóstico de um paciente, alcançar o resultado positivo e seguir para o próximo. Nunca estamos em plena satisfação. E isso não é uma reclamação ou um murmúrio, isso é um fato, uma verdade. Ser médico, muitas vezes, é abdicar da própria vida para cuidar de outras. Em todos os anos, a minha trajetória foi marcada por muitas alegrias, muitos positivos e melhorias, mas eu carrego mortes e todas bastante significativas. Minha herança vem do meu pai, um dos médicos mais fantásticos que eu já pude conhecer, cresci com a sua ausência mas nunca fui capaz de reclamar disso, nunca senti a sua falta porque sabia perfeitamente o que ele estava fazendo: salvando pessoas que outras pessoas amam. Pacientes são pessoas com família, com sonhos, desejos e objetivos, pacientes são amores de outras pessoas. Um paciente é o “eu te amo” de alguém, quem somos nós para decidir se ele viverá ou não e por quanto tempo? Eu poderia exercer a minha profissão em um consultório, poderia ser clinico e não julgo de forma alguma quem opta por isso, já que eu mesmo atendi inúmeros pacientes com meu pai que hoje em dia decidiu se afastar da adrenalina do pronto socorro. Mas a verdade é que para mim só funciona assim, na adrenalina. Atravesso o grande e largo corredor da emergência enquanto olho para o meu relógio de pulso, são exatamente 00h45min e daqui a quinze minutos o meu plantão de 24h termina. Meu corpo deveria estar esgotado e prestes a desligar se não fosse
pelas inúmeras xicaras de café entre um procedimento e outro e, claro, o energético natural de um plantão: o próprio paciente. Levanto o olhar quando ouço uma grande movimentação vindo contrário a mim, três enfermeiros carregam com pressa a maca com uma mulher desacordada sobre ela. Atrás há um grupo de pessoas, todos acompanhantes da paciente.
— Por favor, não deixa a minha amiga morrer! Por favor, não deixa!
Uma das mulheres, a ruiva, implora a um dos enfermeiros que tenta barrar a passagem que limita a área privada. Meus pés são rápidos em ir de encontro a maca, puxo duas luvas de cima do balcão da enfermagem e meu inclino sobre a jovem deitada ali.
— O que aconteceu? — questiono enquanto meus dedos puxando as pálpebras da paciente para cima a fim de checar suas pupilas enquanto acompanho o ritmo de caminhada dos demais.
— Paciente de vinte e quatro anos com intoxicação por opioides. De acordo com a amiga, foram duas seringas de heroína.
Cacete! Assim que a maca é posicionada na sala de intervenção, tiro o estetoscópio do pescoço, posiciono nos ouvidos e no peito da mulher no objetivo de auscultar seus batimentos cardíacos, sem tempo para esperar a adaptação aos aparelhos que ainda está sendo feita.
— Bradicardia severa. Eu quero 2mg de Naloxona.
Puxo o instrumento dos ouvidos, deixando cair sobre meus ombros, retiro a lanterna do bolso e aponto para ambos os olhos da paciente, observando sinais de reatividade pupilar quase nula.
— Vamos, garota, você não quer morrer. Você não quer morrer! — repito enquanto minhas mãos fazem uma manobra na barriga da jovem a fim de desobstruir a traqueia fechada.
Uma das enfermeiras traz o antídoto para a checagem, assim que tem o meu aval, a droga é inserida de forma intravenosa e meus olhos são atentos a mulher desacordada diante de mim.
— 0,5 de adrenalina. — exclamo ainda com os olhos focados. — Outra vez levanto as pálpebras da mulher, não observando sinais de melhoria nem se quer diminuição em suas pupilas dilatadas, um arrepio cobre toda a minha espinha. — Vamos, vamos. Você precisa me ajudar!
— Doutor. — um dos enfermeiros chama a minha atenção para o monitor de frequência cardíaca. Completamente zerado.
— Parada cardíaca! Cadê a porra do desfibrilador?
Minha voz ecoa pela sala apertada, minha testa está suando e eu juro por Deus que essa garota vai viver, ela não tem outra opção. Eu não dou a ela. Minhas mãos são ágeis em realizar manobras de massagem no peito da paciente nos segundos que levam para o carrinho de desfibrilador chegar até a mim. Uma, duas, três tentativas, nada. — Doutor... — uma enfermeira ao meu lado tem a voz suave, eu sei o que ela está tentando me dizer.
— Não! Essa garota não vai morrer, eu não vou deixar! Carrega em 500! — Uma última tentativa, é tudo o que eu posso fazer, tudo o que está na minha capacidade humana e o som do monitor monitorando a volta dos batimentos ecoa, mas nem de longe isso me causa calmaria. — Faz 0,5 de adrenalina!
Repito a minha ordem, desta vez sendo obedecida.
Eu deveria estar em casa, talvez já estivesse dormindo ou talvez já acordando. O tempo dentro do hospital é quase relativo, horas e minutos se fundem e se embaralham, tornam a nossa percepção sobre o tempo completamente confusa. E quando temos uma vida em nossas mãos, o relógio se vira contra nós de forma angustiante.
— Parada cardiorrespiratória! — minha voz ecoa pela segunda vez dentro da sala de intervenção.
Minhas mãos estão cansadas, a massagem cardíaca não faz efeito e o desfibrilador é usado mais uma vez. Duas, três, quatro tentativas. Eu tenho tudo para parar, tenho tudo para deixar essa mulher seguir o caminho que ela quiser, eu posso deixar seu corpo desligar por completo, pouco a pouco. Ela quer isso, não quer? Afinal, quem em sã consciência em uma vida feliz usaria entorpecentes? Quem injetaria drogas na própria veia se a vida estivesse tão boa como deveria estar? Talvez ela não queira isso, não queira ser reanimada e não queira continuar. Talvez a sua vontade seja continuar onde quer que esteja, dando um fim a sua trajetória na Terra. Mas eu não posso deixar isso acontecer, apenas não consigo. Não sei o seu nome e nem quem é você, mas te deixar morrer está além da minha capacidade, me desculpa. — Sinais de batimentos cardíacos. — o enfermeiro anuncia, o mundo ao meu redor parece estar tão parado quanto o da garota recém reanimada no leito. No fundo eu a entendo, afinal.
— Afasta. Afasta da paciente! — repito, aumentando o tom de voz para chamar a atenção de todos que estão na sala enquanto estendo uma das mãos em um pedido de distância.
Para saber se o antídoto funcionou no seu organismo contra a intoxicação é preciso realizar um teste rápido. A equipe é ágil em colher o material sanguíneo enquanto eu preciso cortar as roupas que a garota veste a fim de analisar seu corpo atrás de hematomas e sinais de hemorragia. Seus braços são cobertos por tatuagens e há outras espalhadas, como entre os seios e nas costelas, meus olhos são minuciosos em busca de qualquer vestígio patológico, contusões ou hematomas. Nada, ela não sofreu nenhum tipo de agressão, nem de si mesma, a não ser pela droga. Meus dedos vasculham seus membros superiores e na articulação do braço direito é o único lugar que encontro um hematoma feito pela agulha mal manuseada. Não foi, nem de longe, a primeira vez que essa paciente utilizou opióides, há leves manchas por seus braços que dão sinais disso.
Após um último exame clínico, checagem de pressão arterial e batimentos cardíacos, me permito sentir o mínimo de tranquilidade quanto ao quadro clínico da garota. Tiro as luvas dos dedos, jogo na lixeira mais próxima e tiro o bloco do bolso, lugar onde rapidamente prescrevo exames.
— Leva ela para a radiologia, quero uma tomografia do crânio e pulmões e um hemograma. Quando o teste estiver pronto, traz para mim junto com os outros exames. — dirijo a palavra ao enfermeiro do plantão, entregando a ele o papel com todos os pedidos prescritos. Meus olhos encontraram os dele antes que possa se afastar e fazer o que pedi. — Não tira os olhos dessa garota.
Heroína. Por que raios uma garota jovem como essa quer tanto estragar a própria vida? Qual mal faz com que ela sofra tanto ao ponto de sentir desejo de adiantar a
própria morte? Posso ouvir alguns amigos me dizendo que sou um idiota por insistir na vida de alguém que tentou se matar, que eu deveria prezar pela vida dos que querem viver. Eu sei que se fosse em outras mãos essa garota não teria sobrevivido, e isso não é grandeza, é fato. Não escolhi a medicina para ter o poder de priorizar vidas e nem selecioná-las, eu estou aqui para salvar qualquer um que passe pelas minhas mãos, custe o que custar.
— Tom, você não deveria estar em casa? O que aconteceu? — George, o clínico geral do plantão da noite que tomaria o meu posto, barra o meu caminho quando para diante de mim. Respiro fundo, olho para cima por um breve segundo enquanto coloco as mãos na cintura e dou de ombros, encarando o homem.
— Uma garota deu entrada tendo uma overdose, você viu?
— O quê? Agora? — meu colega de profissão arregala os olhos se colocando em posição de alerta, pronto para seguir adiante em passos apressados quando coloco uma das mãos em seu peito, o impedindo. George me olha confuso.
— É claro que você não viu. Onde estava, George? — arqueio uma sobrancelha ao encarar o homem, que parece trabalhar em sua mente em busca de uma resposta mentirosa, qualquer uma que não entregue o seu romance secreto com a esposa do médico chefe. Solto uma risada fraca e sem humor, tirando a mão de seu peito. — Ela está bem, peguei o caso. — pronto para me afastar e dar continuidade ao trajeto até o vestiário, paro quando ouço a voz de George mais uma vez.
— Tom, valeu por essa. Eu cobro duas horas suas no próximo plantão! — Vou contar com isso.
Respondo antes de voltar ao caminho que leva até o elevador, dois andares acima fica o vestiário onde troco o uniforme médico por minhas roupas depois de um banho rápido. Só quando pego minha mochila em um dos armários é que paro por um instante para verificar as horas no relógio de pulso, já se passava das 2h da madrugada. Não que eu não tenha feito isso nos últimos plantões, ficado até mais tarde ou chegado mais cedo, mas hoje o meu corpo parece sentir uma necessidade maior de descanso. Saio do vestiário masculino com a mochila pendurada em um dos ombros, meus passos são desapressados para chegar até a sala médica que encontro pouco movimentada, é madrugada de segunda-feira e a troca de plantão acabou de acontecer a pouco menos de duas horas, é normal que a sala esteja quase vazia e os staffs e residentes estejam tomando nota do quadro clínico dos seus pacientes.
O único barulho que é possível ouvir dentro da sala é o do ar condicionado central e os dedos de Emily no teclado, a ortopedista parece tão concentrada no que faz que quase não percebe a minha atenção no ambiente, se não fosse pelo arrastar da cadeira poucos metros de distância de onde ela está.
— Oi, Tom! Não sabia que estava no plantão hoje. — ela comenta de forma casual ao mesmo tempo que sua atenção é desviada para mim apenas por dois segundos antes que ela se volte para a tela do computador.
— E não estou, só precisei ficar até um pouco mais tarde.
Um suspiro escapou dos meus pulmões quando me sento em frente ao computador, não estava nos meus planos atender mais uma paciente nos últimos 15 minutos do meu plantão, mas já que isso aconteceu, preciso detalhar todo o procedimento e laudo médico e armazenar para futuros casos. Precisamos dar nota de todos os pacientes que passam por nossas mãos ao longo do dia.
— Algum problema? George está te rendendo, não é? Ele chegou quase junto comigo, umas três horas atrás, eu acho.
— Nada fora do esperado.
Nosso curto diálogo acontece com nossas atenções voltadas para o computador, eu me limito a entregar a Emily uma resposta curta e rápida porque sei que ela é uma das que jamais entenderiam porque eu abdiquei de 1 hora do meu descanso para salvar a vida de alguém. Como se eu pudesse ser médico apenas da porta do hospital para dentro, só durante o horário do meu plantão.
— Dr. William, os exames da paciente da intoxicação por opióides estão aqui. — o enfermeiro a quem designei para tal tarefa aparece dentro da sala. — Estou aguardando apenas o aval para levar ela para a UTI.
Empurro meu corpo para trás, afastando a cadeira da mesa do computador e estendo a mão para pegar o envelope. O teste rápido realizado através da coleta de uma pequena amostra de sangue revela que a quantidade de opióides ainda presente no organismo é desprezível, já o hemograma revela um péssimo quadro clínico com hipoglicemia e falta de ferro, zinco e demais vitaminas, além de um baixo nível de hemoglobina, o que indica uma anemia severa. Já as imagens da tomografia computadorizada, em contrapartida, apresentam um bom diagnóstico.
— Essa garota vivia? — franzo o cenho ao questionar para mim mesmo em voz alta enquanto meus olhos passeiam pelas folhas em minhas mãos. Acabo por negar com a cabeça em resposta a todas as perguntas, tanto a minha quanto a do enfermeiro cujo nome eu sei que nunca vou conseguir gravar. — Deixa ela em observação durante esta noite até ela acordar, não vai demorar até que o efeito da droga passe e ela se recupere, se tudo continuar como está. Pela manhã eu volto, quero uma ressonância dos pulmões quando chegar.
Jogo o envelope com todos os exames em cima da mesa de madeira branca e volto com a minha atenção para a tela do computador, agora precisando concluir o laudo médico de, espera, qual é o nome dela? Uso dois dedos para puxar o envelope para perto e conseguir bisbilhotar sorrateiramente o nome escrito no topo do papel. Queiroz. Quase 3 horas da madrugada obrigo meu corpo a andar até o carro, posso sentir o cansaço me castigar cada vez que meu calcanhares pisam ao chão e uma dor lateja em minhas panturrilhas. Não foram apenas 24h de um plantão, foram horas de emoções, muito trabalho e, claro, muita adrenalina. Ao passar pela recepção e consequentemente pela sala de espera tomo consciência de algo que esqueci por completo, precisava avisar à família de sobre seu estado. Mas ao olhar em volta contexto que há somente um homem mais velho sentado com uma mulher grávida que parece estar prestes a entrar em trabalho de parto. Me pergunto para onde foram aquelas pessoas que trouxeram a garota. A ruiva que tentou de todo jeito ultrapassar a barragem feita pelos enfermeiros, onde está? Dou de ombros, coloco uma das mãos dentro do bolso da calça jeans e sigo o caminho até o estacionamento na lateral do prédio. Meus olhos quase fecham durante o trajeto até em casa, tamanho o sono e cansaço, mas não demora mais que vinte minutos para que eu finalmente esteja atravessando a minha sala até a cozinha, parando no meio do caminho apenas para apertar o botão da secretária eletrônica.
“— Oi! Sou Melanie, da Futbol Company L.A. O que acha de fazer parte do nosso time de torcedores?” Enquanto as mensagens da caixa postal vão sendo anunciadas, abro a geladeira e pego a garrafa de leite, tomo quase metade em uns bons goles direto do gargalo. Passo o dorso da mão pela boca, jogo a tampa de plástico dentro da pia e volto a tomar mais um gole enquanto procuro qualquer coisa que possa saciar parte da minha fome. Quando estou terminando com todo o leite restante da garrafa, uma voz conhecida se faz ouvir na secretária eletrônica, me obrigando a parar e dar atenção ao que é dito.
“— Oi, Sr. Hiddleston, aqui é Margot. Sua mãe não sabe que estou ligando, mas, bem... Não quero te preocupar, mas é que ela não come desde ontem, por mais que eu tente. Fiz uma sopa esta noite, como o senhor pediu, mas ela não quis. Bem, é isso, desculpe.” A ligação termina, deixando nada além de um silêncio quase doloroso no ambiente se não fosse pela minha real necessidade dele. Quantas vezes em meio a todo o caos do dia, nós precisamos apenas de um minuto em um total silêncio? Se fecharmos os olhos e prestarmos bem a atenção nele, é possível ouvir um zumbido que gradativamente vai ficando mais alto e quase insuportável. Há um grupo de pesquisadores que garante existir um quarto onde o som externo é tão nulo que o silêncio mais absoluto é presente e somos capazes de ouvir até mesmo o som dos nossos órgãos em funcionamento, o que nos leva à loucura. Para o bem da sanidade mental da humanidade, eu espero que nunca ninguém visite este lugar. Vencido pelo cansaço, deixo a fome para ser tratada no dia seguinte e me dedico a um bom banho de ducha antes de ir para a cama e cair num sono digno dos deuses, isto é, até o despertador da minha mente tocar as 8h da manhã, pouco mais de quatro horas depois.
O cheiro dos ovos rapidamente toma a cozinha, bem como o do chá de erva doce com leite. Sentado em uma banqueta em frente a ilha da cozinha, desfaço um pão em vários pedaços pequenos, jogando dentro do prato onde os ovos de gema mole estão. Com os próprios dedos, molho um pedaço do pão na gema e levo a boca, o gosto misturado com o do chá resulta em um sabor tão incomum e ao mesmo tempo tão delicioso, que não abro mão de chamar este de o melhor café da manhã que eu posso cozinhar.
Apesar das poucas horas de sono, elas foram muito bem dormidas e eu sinto meu corpo revigorado, assim como minhas energias. Mas sei que isso vai durar pouco, que minhas energias vão dissipar assim que eu pisar na casa da minha mãe, lugar onde vivi por longos anos. O trajeto até a minha antiga casa é demorado, não pela distância e sim pelo trânsito tortuoso de uma manhã de segunda-feira em Los Angeles. Apesar disto, quando os ponteiros do meu relógio de pulso marcam 9h e 35 min, eu já estou dentro da casa percorrendo os corredores até entrar no quarto no segundo andar. Ali está ela, sentada em um baú de couro posicionado embaixo da janela, seus pés estão para cima, as pernas bem esticadas e o roupão branco amassado dando a ideia de que ela dormiu com ele no corpo. Sua atenção está voltada para a rua de forma que a minha presença precise ser anunciada para que ela perceba que estou aqui.
— Mãe. — minha voz ecoa em um tom baixo, não quero assustá-la. Com as mãos dentro dos bolsos dianteiros da calça jeans, me aproximo em passos lentos e cuidadosos até me sentar na outra extremidade do baú, fazendo-a olhar para mim. — Como você está?
A pergunta é imbecil, eu sei disso e ela também, talvez seja esse o motivo que a faz não responder, mas pisar em ovos com a própria mulher que me deu a luz é uma das situações mais cansativas que já precisei enfrentar. Diana tem um olhar vazio para mim, mas o resquício de um sorriso ladino em seus lábios ao me ver basta para que me sinta confortável aqui. Ela estendeu uma das mãos para mim, rapidamente a seguro entre os meus dedos e começo uma suave massagem no dorso.
— Margot me falou que você não está comendo. Mãe, você sabe que precisa se alimentar, não é? Sabe ainda mais do que eu. —a nutricionista diante de mim volta a desviar o olhar para a janela e, ainda em silêncio, suspira. — Vamos lá, promete que vai tomar a sopa no almoço? Ao menos isso, mãe, por favor.
— Thomas, meu filho, não vai se atrasar para o trabalho? — Quando Diana abre a boca, um ponto de esperança nasce no meu peito, visto que a fala se tornou algo não mais praticável por ela, mas assim que ouço o que é dito, o ponto de esperança se esvai e dá lugar à frustração.
— Eu vou voltar mais tarde, e você vai comer comigo.
Respiro fundo, não escondendo o desapontamento na voz, me levanto e inclino o corpo para deixar um beijo em seus cabelos antes de sair do quarto e deixar minha mãe sozinha outra vez. Se passaram duas semanas desde que Sarah se foi, a filha que
minha mãe teve um ano antes de conhecer meu pai e se casar pouco tempo depois, já grávida de mim. A primogênita, dois anos mais velha na idade, mas sempre com uma alma tão leve quanto a de uma criança. Duas semanas de luto pela morte de uma filha não é o bastante e eu sei disso, este o único motivo que me leva a dar à minha mãe o espaço que ela precisa. Mas duas semanas desde a morte de uma irmã também não um tempo a se considerar longo, nem perto disso. Acontece que, desde que meu pai saiu de casa, mesmo não morando mais aqui, eu sinto toda a responsabilidade colocada sobre meus ombros, principalmente porque James nunca aceitou Sarah, mesmo criando como sua filha. Ou pelo menos é o que deveria ter feito.
— Sr. Hiddleston! — Margot anda em passos rápidos com suas pernas relativamente curtas, ela se aproxima de mim assim que desço o último degrau da escada. — Bom dia! Conseguiu convencer sua mãe a comer algo?
— Margot, sabe que tenho outro sobrenome, não sabe? Eu tenho certeza que você consegue se acostumar com isso. — apesar de tentar não ser mal educado, não consigo esconder o desconforto. A empregada que trabalha nesta casa há anos se sente tão desconfortável quanto eu e assente à minha fala. — Não, não consegui, mas volto mais tarde para comermos juntos.
— Devo preparar algo em especial?
— A sopa já está ótimo, Margot. — me afasto da mulher mais velha, recolho meu colete pendurado atrás da porta e o visto antes de abri-la. — Me liga se acontecer alguma coisa com ela. — é o meu último pedido antes de sair porta a fora.
Entro no meu carro e dirijo pelas ruas de Los Angeles por alguns quilômetros até chegar no hospital, meu próximo plantão começa amanhã, outro de vinte e quatro horas, e eu deveria estar em casa descansando ou fazendo qualquer outra coisa longe do local de trabalho. Eu costumava passar boa parte do meu tempo de folga estudando, lendo um livro, saindo com colegas ou aproveitando a vida de alguma forma, mas cada pessoa tem o seu próprio jeito de lidar com o luto, e o meu é este, focando na dor de outras pessoas e fazendo de tudo para transformá-la em esperança. Cada minuto que a minha mente descansa, a imagem de Sarah aparece como um fantasma que me assombra sem piedade, eu não vou parar até que ela suma de uma vez por todas, ou até que o fardo seja mais leve. Passo pela porta giratória que dá acesso a recepção do L.A Medical Center, o ambiente amplo e extremamente limpo cercado por paredes de vidro é calmo e traz uma boa sensação de organização, sigo de elevador até a enfermaria do terceiro andar e uso o computador para buscar informações sobre a minha paciente. Quando meus olhos passam pelas linhas, não posso acreditar no que estou lendo.
— Mas que porr... — seguro a língua antes de terminar a frase, já tendo olhares dos demais profissionais que estão por perto voltados para mim.
Me afasto do computador e vou com passos apressados até a Unidade de Tratamento Intensivo no quinto andar, não demora até que a imagem de George entre
no meu campo de visão. Ele está de costas, escrevendo algo em sua prancheta aos pés do leito, para me aproximar preciso me paramentar com máscara descartável, e assim que o faço, o homem se vira para mim em completa estranheza.
— George, o que aconteceu com a ? — questiono antes que o mais novo consiga perguntar sobre a minha presença em um dia de folga. Coloco ambas as mãos na cintura enquanto espero por sua resposta.
— A paciente da overdose? — apesar de transparecer surpresa, ele coloca a prancheta contra o peito para me responder e aponta com o queixo para atrás de mim. — Leito 04. Ela teve uma dispneia severa durante a noite, encontrei duas fístulas bronco-pleurais e precisei entubar.
Nada do que George diz é novidade porque pude ler o relatório da noite no computador da enfermaria, o que me deixa em pura curiosidade é porque a garota está com um quadro clínico tão complicado.
— Eu pedi uma ressonância dos pulmões antes de sair, você chegou a ver? — pergunto com os olhos pousados na cortina do leito 04, está fechada, o que indica que provavelmente as enfermeiras estão cuidando da higienização da paciente.
— Sim, eu vi, foi bom você ter pedido, foi o que diagnosticou as fístulas. O resultado saiu pouco depois da crise de dispneia. — George suspira, provavelmente pensando o mesmo que eu. — Essa garota é nova, não deveria ter chegado a esse ponto.
— Cada um sabe o fardo que carrega, George. — meu comentário sai como um pensamento em voz alta, e eu penso se fui rude com um amigo sem ter intenção, mas o olhar de pena que George me lança deixa claro que ele não entendeu de forma errada. — Você liberou o banho?
— Sim, não temos o que fazer, Tom. É esperar ou esperar, você sabe.
Respiro fundo, deixando que o ar saia devagar e concordo com um aceno de cabeça, concordo que não há nada a ser feito a não ser aguardar, mas ainda assim me sinto incomodado. Me afasto do meu colega para seguir até o balcão de enfermagem localizado no centro da UTI, a pasta da paciente está logo sobre uma pilha e eu folheio as páginas apenas para ter certeza de que nada me passou despercebido e para passar o tempo enquanto as enfermeiras cuidam da higiene da garota. Minutos se passam e não demora até que eu me aproxime do leito onde a paciente está, com as mãos dentro dos bolsos do jeans, permaneço de pé ao lado da cama e percorro meu olhar pelos monitores até pairar sobre o rosto dela.
— ... — digo seu nome em um pensamento alto. — O mundo é realmente muito pequeno.
Agora, sem a adrenalina de uma emergência, sem a emoção a flor da pele e sem a responsabilidade de uma pessoa entre a vida e a morte nas minhas mãos, consigo olhar para o rosto da garota e me lembrar perfeitamente do dia em que esbarrei em seu corpo em um bar, a cena dela completamente suja pelo drink derramado e totalmente enfurecida me vem à memória e eu tenho uma sensação de nostalgia estranhamente reconfortante. É como se existisse uma passagem de tempo, um portal imaginário no meio disso tudo. Aquela noite, no bar, não era nada além de uma noite entre colegas daqui mesmo do hospital, era fim de plantão, eu não podia imaginar que dois dias depois minha irmã morreria. E menos ainda que a garota que faltou pouco para me xingar naquela noite, hoje lutaria com a morte e seria eu a ajudá-la nessa batalha. Ou melhor, ela está lutando com a vida, e eu com a morte. Estamos em lados opostos nisso.
Depois de , aproveito o momento no hospital para passar por todos os demais pacientes do dia anterior que precisaram ficar em observação, mas nenhum em estado grave ou crítico, e todos bem assistidos por George durante o dia. Como o tempo dentro do hospital parece ser relativo e às vezes corre diante de nossos olhos, quando checo o relógio de pulso descubro já ser quase meio-dia, o que provavelmente explica a minha fome. Ando em passos rápidos pelos corredores no térreo a fim de sair do hospital, mas ao passar pela recepção meus ouvidos ouvem o nome da minha paciente e eu viro o rosto para descobrir o porquê.
— Queiroz, ela deu entrada aqui ontem a noite, de madrugada.
A mesma ruiva que minha memória guardou está debruçada sobre o balcão da recepção, suas mãos estão trêmulas, ela está nervosa enquanto estala os dedos e olha atentamente para o computador onde a atendente faz a checagem de dados. A garota me lembra a minha paciente, o mesmo estilo de roupas, tatuagens e acessórios.
— Você é parente da ? — pergunto ao me aproximar da jovem que rapidamente dirige o olhar para mim quando ouve o nome da pessoa por quem procura.
— Sou amiga, a melhor amiga dela. Você tem informações sobre a ? — ela pergunta, parecendo esquecer da atendente quando volta com o seu corpo para a minha frente. Solto um suspiro cansado e faço um sinal com a cabeça para trás de mim, indicando que ela me siga apenas alguns passos suficientes para liberar a passagem da recepção. — Ela está bem, não está? Quer dizer, vocês ligariam se ela tivesse morrido. Não é?!
— Desculpa, qual é o seu nome? — não posso negar sentir estranheza na preocupação da jovem visto que, quando saí logo após atender a paciente, não vi ninguém à espera de informações, nem mesmo a sua melhor amiga.
— Julie.
— Certo, Julie. Sou o Dr. William, atendi a sua amiga ontem quando deu entrada aqui. — cruzo os braços diante do peito e umedeço os lábios rapidamente antes de continuar a fala. — teve o que chamamos de intoxicação por opióides, uma overdose. E o exame confirmou a informação dada por vocês, a droga foi heroína.
A ruiva parece sentir suas pernas fracas no momento em que ouve as minhas palavras, porque cambaleia para trás até recostar na parede, ela passa as mãos pelo rosto e as deixa ali, encarando a porta de saída metros de distância atrás de mim. Me sinto no dever de tranquilizá-la, mas ainda assim ser sincero.
— Ela está bem, estável no momento, mas a situação é crítica. Foi difícil conter os danos da droga, tudo o que estava ao nosso alcance foi feito, agora precisamos esperar por ela.
— Ela... Ela está acordada? — sua voz é baixa, contém um tremor já bem conhecido por mim, e seus olhos carregam um brilho de esperança. Solto os braços diante do meu corpo para colocar as mãos nos bolsos da calça e olho para baixo por um segundo antes de respondê-la.
— Como eu disse, Julie, precisamos esperar por ela. Durante a madrugada teve uma parada respiratória, foi diagnosticado algumas fístulas em seus pulmões que já foram tratadas, provavelmente em decorrência do fumo. Optamos pela intubação para que ela consiga se recuperar mais rapidamente. Agora ela está sob efeito de sedativos, mas assim que seus pulmões se recuperarem, cortaremos a medicação e aí... bom, aí é esperar por ela.
Como eu esperava, as minhas palavras têm um efeito intenso sobre a garota, elas parecem pesar a cada sílaba e Julie esconde o rosto nas mãos outra vez, mas agora é para chorar. A mulher diante de mim, recostada na parede, desaba em choro e eu não posso fazer nada além de buscar um copo com água gelada para surtir um efeito psicológico de calma. Eu sei que poderia ter desistido de quando, pela segunda vez, o seu coração parou e não voltou em três tentativas de reanimação. Mas eu sabia que ela era o amor de alguém, e Julie está aqui para provar que eu estava certo. A ruiva toma água em goles pequenos, seus dedos trêmulos e olhos agora vermelhos demonstram o nervosismo.
— Ela tem chances, não tem? — outra vez o brilho da esperança é visto em seu olhar.
— Sim, ela tem. Nada é definitivo. — ao dizer, não posso deixar de questionar sobre os hábitos da paciente. — Julie, o que você sabe sobre a ? Sobre a sua alimentação e o vício em drogas.
— Sei tudo, nós moramos juntas. — ela esboça um sorriso carregado de culpa enquanto segura o copo agora vazio e coloca uma mexa de cabelo atrás da orelha. — Nós nos alimentamos mal, eu reconheço, ficamos o dia todo no trabalho e em casa quase sempre estamos com os amigos bebendo e beliscando alguma porcaria. — ela deixa escapar uma risada, o que me deixa bastante incomodado e eu preciso controlar para não demonstrar isso. — Sobre o vício, bom, já experimentou bastante coisa, mas o que ela mais usa é maconha e bala. A heroína, você sabe, é só quando as coisas apertam...
— Não, eu não sei, desculpa. E... bala? — franzo o cenho, voltando a cruzar os braços com a atenção toda voltada para Julie. — O que seria isso, exatamente?
— Ecstasy. A gente usou ontem antes de... antes disso acontecer.
— Ecstasy? — ergo as sobrancelhas ao ouvir, realmente desejando ouvir da boca dela que eu estou apenas entendendo errado, mas não é o que acontece. — Julie, o exame de sangue da está péssimo, essas drogas corroem o organismo. Elas inibem a fome quase que por completo, consequentemente as pessoas que usam não se alimentam como deveriam. Sua amiga está anêmica, anemia severa abre caminho para leucemia, você tem noção disso? E eu tenho quase certeza que você está no mesmo caminho.
Diante da minha fala, a garota encolheu os ombros e desviou o olhar para os próprios pés, me sinto como um adulto dando sermão em uma criança desatenta e completamente irresponsável. Mas, no final, eu não tenho nada a ver com a vida de Julie, apenas com a da minha paciente e só enquanto ela estiver dentro deste hospital.
— Eu sei que não estamos certas, ok? Eu sei. — a criança irresponsável diz e eu não faço nada além de concordar com a cabeça. — Eu posso ver a minha amiga?
— Não hoje, melhor não. Amanhã eu estou aqui, você pode vir pela manhã no horário de visitas.
— Certo. — outra vez sua voz sai em um fio.
— Sugiro que você faça um exame de sangue. Fique à vontade para se consultar com outro médico se preferir.
É como um efeito dominó, a droga vai dilacerar a vida de quem faz o uso dela, isso é um fato. Mas quando em um grupo de pessoas uma cai, é fácil puxar o linha e desenrolar o diagnóstico dos demais, quase sempre é o mesmo. Eu não posso afirmar que Julie terá o mesmo fim que sua melhor amiga, nem mesmo que ela tem o mesmo laudo médico, isso só os exames podem dizer, mas a minha experiência me permite apontar a proa do barco para a melhor direção.
A segunda-feira de verão está quente ao ponto de levar as pessoas à praia, enquanto caminho pelo centro da cidade posso ver biquínis nas vitrines e mulheres animadas nas escolhas dos seus. Eu acho que entendo o gosto que alguns têm pelo mar, é sempre maravilhoso estar em contato com a natureza de algum jeito, mas a minha preferência sempre será a cachoeira. Um bom britânico esquecido pelo sol é como um vampiro preso em seu castelo durante o dia. De passagem pelas ruas do centro de Los Angeles, escolho um restaurante simples de comida caseira para almoçar para em seguida pegar o caminho de volta à casa da minha mãe.
A casa é grande, espaçosa e muito bem decorada com uma arquitetura clássica em tons de branco e azul, um dia isso já nos trouxe paz, hoje é mais como um ambiente frio. Consigo despistar a empregada quando entro pela porta principal e sigo até o quintal dos fundos coberto por um gramado muito bem cuidado, uma piscina no centro e um jardim à esquerda. As árvores permitem que o vento bata em meu rosto e posso senti-lo em minha pele, a sensação é parecida com a de um abraço, toma todo o meu corpo como se fosse um abraço invisível da natureza. Já a água da piscina mal se move, é serena e reflete o sol que bate ali, eu consigo ver Sarah mergulhando até o fundo, ela sempre teve a incrível capacidade de segurar o ar ao máximo por minutos, enquanto eu não aguentava sequer trinta segundos debaixo da água e sempre perdia nas nossas competições quando criança. Quando sinto o vento em mim outra vez, um sorriso ladino esboça em meus lábios. Nem tudo na vida tem um porquê, às vezes nós só precisamos continuar, sem olhar para trás.
***
— Mãe, vamos lá, só uma colherada. — insisto com a colher parada no meio caminho entre a tigela e a boca de Diana. A mais velha suspira impaciente com a minha teimosia e abre a boca, o que me faz sorrir. — Isso ai! Não doeu, não é? Então vamos, mais uma.
— Thomas! — ela me repreende, virando o rosto depois de receber a sopa. — Tome você.
— Estou tomando, olha só. — uso a mesma colher para tomar um pouco da sopa, dividindo a tigela com minha mãe. — É sua vez de novo.
Outra vez encho a colher e levo em direção aos seus lábios, mas Diana perde o resquício de paciência e levanta da poltrona para ir até a cama, me fazendo suspirar frustrado. Ela não diz nada, e nem precisa.
— Tudo bem. Vai ser do seu jeito, então. — me levanto, deixando a tigela sobre a pequena mesa entre as duas poltronas. — Vou deixar uma receita de vitaminas com a Margot, você vai tomar duas pílulas duas vezes no dia, quando acordar e a noite. Caso não tome, vou te levar para o hospital e te deixar em observação no soro. — disto isto,
ajeito a camisa preta em meu corpo e me aproximo da porta, mas paro assim que ouço a sua voz.
— Você não vai fazer isso. — ela murmura e um sorriso travesso cresce em meus lábios.
— Como eu disse, duas pílulas de manhã e duas de noite. Ou a sopa.
Não dou tempo para uma resposta, saio do quarto de Diana deixando-a sozinha com suas escolhas, a mulher que odeia remédios e tem pavor de agulhas. É irônico que tenha um ex-marido e filho médicos. Desço as escadas em passos apressados e atravesso o hall até entrar na cozinha onde Margot parece limpar a bancada.
— Sr. Hiddle... William! — ergo as sobrancelhas para a mulher mais velha, esboçando um leve sorriso ladino. — Então, Diana conseguiu comer?
— Uma colherada. É um progresso. — suspiro ao dizer, debruço os cotovelos na bancada já limpa e olho ao redor, percebendo que as frutas dentro da fruteira estão prestes a estragar. — Quero que faça o seguinte, pegue essas bananas e maçãs e faça uma vitamina, dê a minha mãe amanhã de manhã. Se ela recusar, você toma. De qualquer modo, me liga ou manda uma mensagem avisando qual foi a escolha dela.
— Ok. Sim, senhor, eu vou fazer isso. — a mulher concorda com um aceno de cabeça e eu me afasto, seguindo para a saída, mas paro na porta e olho para ela.
— Margot, você trocou as minhas fraldas, porque não me chama de Thomas? — ela parece surpresa com a pergunta. — Eu não sou como o meu pai, você sabe. — Tomo o caminho de volta para a porta principal da casa, onde posso ver o céu já escuro quando saio para ir em direção ao carro.
***
Preciso tomar um banho depois que um paciente vomita nas minhas calças, o garoto de onze anos deu entrada na emergência com dores abdominais, náusea e febre, e justo durante o exame clínico ele finalmente conseguiu vomitar e colocar para fora a minúscula bola de borracha que engoliu. Pelo bem do menino, não será preciso uma intervenção cirúrgica, e para o meu bem, um banho no meio do plantão sempre é revigorante. De banho tomado e devidamente vestido, volto à emergência onde deixei alguns papéis pendentes de assinatura, os encontro em cima do balcão da enfermaria e começo a assinar, um a um, até ouvir uma voz chamando pelo meu nome. Quando viro o rosto sobre um dos ombros, vejo Julie e os demais que estavam presentes na noite do acidente.
— Julie, oi. — apenas termino a última assinatura antes de devolver os papéis para o envelope e me virar completamente para os quatro.
— Viemos ver a nossa amiga.
— Claro, eu só não posso liberar a entrada de todos juntos, vai ter que ser um de cada vez.
— Vai você. A gente vai depois, não tem problema. — um dos caras fala e a ruiva concorda de imediato.
— Obrigada, Zack. Então, vamos? — Julie se volta para mim e eu assinto, indicando com a mão o caminho para ela seguir.
— Vocês podem esperar na recepção, por favor.
Sigo os passos da garota até tomar a frente e guiá-la ao quinto andar. Ao adentrarmos a UTI, oriento Julie na higienização das mãos e no uso da máscara descartável, assim que abro a cortina que separa o leito 04, a garota olha para a amiga e congela no mesmo lugar. Permaneço em silêncio, mas presente ao lado dela, sei perfeitamente como essa sensação é consumidora e parece explodir dentro do peito. Julie se aproxima em passos lentos até conseguir ficar próxima da paciente, ela ergue a mão mas para no meio do caminho e olha para mim como se pedisse permissão, e logo que tem o meu aval, seus dedos acariciam a pele de , contornando sua testa em um gesto afetuoso.
— Oi, Lili, eu estou aqui. Você pode me ouvir, hm? Me desculpa não ter vindo antes, eu surtei e quase precisei ficar aqui com você, mas não de um jeito bom. — ela sorri por trás da máscara, mas seus olhos estão marejados, prestes a transbordarem em choro. — Meu Deus, olha só pra você, como eu deixei chegar nesse estado?! Eu deveria ter cuidado de você, deveria ter perguntado se você estava bem. Me perdoa por isso? Por favor, me perdoa por isso.
Eu amo o que faço, mas não é fácil, nunca foi, nem nos menores detalhes. Há quem diga que para exercer a medicina a pessoa precisa ser fria e calculista, não ter medo da morte e saber enfrentar de frente os piores pesadelos. No início eu negava essa ideia, mas hoje só posso concordar que a frieza precisa correr em nossas veias em momentos como esses, ou iríamos à beira da loucura. Meu olhar paira sobre o relógio na enfermaria antes que eu volte para Julie.
— Julie, se os outros realmente quiserem vê-la, eu preciso que você seja rápida. Me desculpe.
— Sim, tudo bem. — ela funga enquanto ajeita a postura, passa seus dedos pelos olhos maquiados e lança um último olhar para antes de vir até a mim, ela observa o meu crachá e ajeita a bolsa no ombro — Obrigada por cuidar dela, Dr. Thomas.
Esboço um pequeno sorriso ladino em resposta ao agradecimento da jovem, a acompanho com o olhar até a sua saída da ala de UTI e logo minha atenção está sobre . Me aproximo do leito, apoio as mãos no ferro da maca e respiro fundo. Não há tempo determinado, nem horas previamente estabelecidas, só pode fazer por ela mesma, só ela pode encontrar forças dentro de si para se recuperar, o que eu posso fazer é apenas dar a assistência que ela precisar.
— Você tem bons amigos. Apesar de tudo, eles se preocupam com você.
Falo olhando para a porta quando vejo a figura de um homem entrando ao local e indo direto para o lavatório se higienizar. Dou uma última olhada nos monitores antes de deixar o amigo da paciente ter um momento com ela. Um a um, todos os quatro conseguem ter um momento com , mesmo que por poucos minutos, e isso não fica apenas na terça-feira, todos os dias o grupo se reveza e um vem para a visitação. Com o passar dos dias descobri o nome de cada um deles, médicos ouvem confissões que jamais serão capazes de esquecer e uma delas foi o beijo que aconteceu entre os dois amigos antes de fazer o que fez. Infelizmente adentrei o local quando Zack estava realizando a visita em uma manhã de sábado, o rapaz tinha os olhos vermelhos e falava com a garota sobre o beijo, mesmo sabendo que ela não responderia. Ao notar a minha presença, a confissão foi automática, e eu, bem, o que posso fazer a não ser ouvir? No décimo dia é a vez de Julie fazer a visita, o que acontece durante o meu plantão, e após ver a amiga, antes de ir embora, a ruiva me encontra no meio da emergência para um pedido inusitado, mas sério.
— Não deixa o Simon visitar ela, por favor, em hipótese alguma. — seus olhos estão tomados por um sentimento difícil de decifrar, mas eu arrisco dizer que é desespero.
— Quem é Simon e por que ele não pode vê-la?
— É o namorado da e ele não pode vir. Dr. William, por favor, me prometa isso. — A súplica em sua voz faz o meu cérebro revirar em curiosidade.
— Fica tranquila.
O que falo parece ser o bastante para Julie, porque a garota suspira em alívio e dá as costas, me deixando sozinho com a minha curiosidade. Mas é mais do que isso, por que o namorado não pode vir vê-la? E se ela tem um namorado, por que se passaram dez dias e ele ainda não apareceu?
Continua...
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